quinta-feira

JULGAR UM ESTRANGEIRO




No tribunal em que desempenho funções, acaba de ser instalado o sistema áudio de tradução simultânea.
Em Portugal, muitos dos presos são estrangeiros. Alguns serão brasileiros ou oriundos de outros países lusófonos.
Mas o julgamento de arguidos que não dominam a língua portuguesa levanta sempre uma série de problemas.
No início da minha carreira de juiz, recordo-me de ter dito a uma colega:
- Não seria má ideia o seu funcionário contactar a embaixada do país do arguido. Até lhe poderão providenciar protecção diplomática.
A resposta dela foi demolidora:
- Deixa-me rir antes que me esqueça. Eu trabalhei durante sete anos numa embaixada. Conheço bem o tipo de ajuda que davam.
Nunca cheguei a saber qual era essa representação diplomática onde a minha colega estivera.
Mas a verdade é que actualmente as coisas já não se passam assim.
Existe uma preocupação de os diplomatas acompanharem os casos dos seus compatriotas que são apanhados na malha da justiça portuguesa.
O julgamento de uma pessoa que não conheça a língua portuguesa exige logo a presença de um intérprete. Tal significa que demora-se o dobro do tempo, no mínimo.
O juiz coloca uma questão. O tradutor vai tomando notas e depois transmite-a ao arguido. Este responde e há nova versão para a língua portuguesa.
Trata-se da interpretação sucessiva. É a normalmente praticada em quase todos os tribunais.
Eu procuro ser rigoroso. Isso exige-me um grande dispêndio de tempo. É ouvida uma testemunha portuguesa. Eu digo ao intérprete para transmitir ao arguido aquilo que foi dito. É fundamental que o acusado saiba o que se está a passar.
A partir de agora, ficarei beneficiado pela tradução simultânea.
Vou passar a usar uns auscultadores, que fazem lembrar os julgamentos de Nuremberga, iniciados em 1945, logo após o termo da Segunda Guerra Mundial.
Numa cabina insonorizada, encontram-se dois tradutores. À medida que o arguido vai falando, eu vou ouvindo imediatamente a respectiva versão em português. Poupa-se imenso tempo.
É um trabalho extremamente cansativo para o intérprete. Apenas o executa durante quinze minutos. Depois, passa a actuar o colega, permitindo uma pausa para descanso. Todavia, mesmo durante essa interrupção, o primeiro está atento para o caso de o colega ter alguma dúvida ou hesitação. Decorrido mais um quarto de hora, o outro intérprete volta a falar, alternando sempre os dois.
Há um tipo de crime frequentemente praticado por estrangeiros: condução em estado de embriaguez. Hábitos de consumir vodka em quantidades apreciáveis e a necessidade de compensar as saudades do país natal mediante a participação em festas de convívio fazem com que algumas pessoas não pensem antes de agarrar no volante.

O tráfico de droga, a extorsão de dinheiro a compatriotas e assaltos são outros crimes que trazem imigrantes ao tribunal.
No entanto, de uma forma geral, as comunidades de estrangeiros têm uma preocupação redobrada em cumprir as leis nacionais.
Nós próprios, quando viajamos para fora do país, somos sempre um pouco cautelosos. Desconhecemos os usos e costumes locais, quanto mais as leis. Fazer uma festa na cabeça de uma criança tailandesa pode ser uma fonte de incómodos. Está-se-lhe a tirar a alma. Segurar o copo com a mão esquerda nos países árabes também não é bem encarado. Essa mão é destinada a usar o papel higiénico, nas instalações sanitárias. Nalgumas nações, pode haver sérios problemas com o consumo de álcool em lugares públicos. No Kuwait, é impensável mascar uma pastilha elástica no passeio, a uma sexta-feira. É dia de jejum absoluto.