sexta-feira

A VERDADE VEM SEMPRE AO DE CIMA



Anteriormente, referi-me ao Prado, pequena povoação de Santarém. O nome é do mais inocente possível, mas deu origem a um divertido equívoco.
Há uma outra localidade mais conhecida a nível nacional, que é a Cova da Piedade. Fica em Almada e tem alguma vida própria. Alojou outrora o maior supermercado do concelho, que entretanto se transferiu para o centro comercial a caminho da Caparica.
Vem isto a propósito de um caso relatado por Fernando Correia, o radialista que anima os debates nocturnos da TSF. Vale a pena ler o seu livro "A rádio não acontece... faz-se".
Certa vez, encontrava-se ele em Fátima, juntamente com o Padre Cabeçadas, realizando uma reportagem sobre as cerimónias litúrgicas de 12 e 13 de Maio. Estava a passar a procissão das velas e os jornalistas acotovelavam-se uns aos outros no meio da multidão, em plena Cova da Iria.
O comentador da RTP estava entusiasmadíssimo. A sua voz acabava por ser captada pelos microfones da rádio, sendo igualmente escutada pelos ouvintes da telefonia.
A dado momento, saiu-se com esta:
- É toda esta emoção que estamos aqui a sentir na Cova da Piedade !
Embora tenha gerado um momento de humor, talvez não estivesse longe dos factos objectivos. A palavra piedade fazia ali algum sentido.


CORTIÇA

As confusões e os mal-entendidos são das melhores maneiras que um juiz tem ao seu alcance para tentar chegar à verdade. Quando me apercebo de que alguém está com pouca vontade de ser sincero, o melhor é baralhar e tornar a dar.
Os roubos de cortiça são altamente rentáveis. Durante o dia, os ladrões localizam os fardos de melhor qualidade. À noite, dirigem-se ao sítio com uma camioneta e trazem material de valor que pode atingir os trinta mil euros.
Vendem a cortiça a um comerciante sem escrúpulos, por um quarto do preço real. Mesmo assim, fazem um lucro significativo em poucas horas.
O receptador é cauteloso. Faz sempre o pagamento e a recolha da mercadoria do lado oposto da estrada, relativamente ao seu local de armazenagem. Se a polícia se aproximar, atravessa e vai para o escritório, fingir que está a fazer serão. Mesmo assim, ainda condenei um deles no Ribatejo. São dois ou três os receptadores mais conhecidos.
Tive em mãos um caso muito delicado. O cabecilha estava preso, já por roubos anteriores. Eu, como juiz de instrução, encontrava-me a investigar outros assaltos.


INFIDELIDADE

Com o homem na cadeia, a esposa arranjou novo companheiro.
O preso ficou furioso. A mulher já ia no terceiro consórcio. Tinha um filho adulto, da primeira ligação.
Era óbvio que os assaltos efectuavam-se sempre com vários elementos. A cortiça é leve, mas sempre demora o seu tempo a carregar. Convém não ser muito lento.
No entanto, o arguido nunca quis confessar quem eram os seus cúmplices.
Curiosamente, quando soube da infidelidade da mulher, resolveu abrir o jogo. Quem o auxiliava era o filho mais velho da esposa. Seria verdade ou mera vingança? Não me foi fácil decidir.
Convoquei a senhora.
A primeira atitude dela foi dizer-me que não sabia de nada e que o filho não estava de certeza envolvido nos assaltos. Só veio a conhecer o caso após a detenção. O marido efectivamente saía muitas vezes à noite, mas ela desconhecia com que finalidade.
Ela era dona de casa e não se conhecia profissão ao esposo. Aquela negação peremptória era duvidosa.
Perguntei-lhe: "o seu marido em cada noite de assalto, fazia aí uns seis mil contos?".
Obtive resposta imediata:
- Nem pensar, Senhor Doutor Juiz! A camioneta era pequena.
Foi um bom começo para retomarmos a nossa conversa.