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O BILHETINHO DO FUTEBOLISTA




Há dez anos atrás, um jogador do Sporting assinou a sua transferência para o Juventus.
Poucas semanas passadas, recebeu uma proposta irrecusável do Parma.
O diabo é que ele já se tinha comprometido com a outra equipa.
O que é que ele resolveu fazer?
Foi pedir um bilhete de identidade novo, dizendo que tinha perdido o anterior. Mudou completamente de assinatura.
Celebrou o contrato com o Parma, já com o novo autógrafo. O objectivo era furtar-se ao cumprimento das obrigações com o Juventus, pois a sua assinatura oficial não coincidiria com a constante do documento em posse desse club.
É claro que isto levantou uma série de problemas legais, que foram levados a tribunal.
O interessante é que o primeiro queixoso foi o próprio desportista.
Um jornal tinha conseguido obter uma cópia do bilhete de identidade, que ele dizia ter-se extraviado. Publicou-a com a finalidade de dar a conhecer como era a sua assinatura à data em que assinou pelo Juventus.
Ora afirmava o futebolista que isso era uma invasão da sua privacidade.
O bilhete de identidade é um documento muito pessoal, que não pode andar aí a ser divulgado.
Só em parte tinha razão.
Evidentemente, em relação à maioria das pessoas, a publicação, no jornal, de uma cópia do bilhete identidade é inadmissível.
Contém dados pessoais, como sejam a fotografia, a data de nascimento, o estado civil, a naturalidade ou o local de residência. Respeitam ao domínio da vida privada de cada um. Não podem ser difundidos pelos meios de comunicação social.
Mas, neste caso, estava-se perante uma figura pública. Não só pelo seu desempenho desportivo numa área de grande popularidade. Mas também porque ele surgia frequentemente na imprensa cor de rosa.
Portanto, era descabido dizer que se sentia incomodado com a publicação do seu bilhete de identidade.
Com certeza, ele estava aborrecido era por toda a gente ficar a saber que mudara de assinatura.
Obviamente, o tribunal deu razão ao jornal. Tinha o direito de informar os leitores, daquela forma.
Há uma outra questão legal.
Relaciona-se com a eficácia dos contratos.
Em princípio, eles só valem entre as pessoas que o assinaram.
Não produzem efeitos em relação a terceiros.
Ou seja, o Parma nunca ficaria afectado pela existência de um contrato prévio com o Juventus. Tudo o que este club poderia fazer era pedir uma indemnização ao jogador.
Em regra, mesmo que terceiros tenham conhecimento da existência de um contrato, este cria obrigações apenas entre as duas pessoas que o celebraram, mas não para outros indivíduos.
Certa vez, o dono de uma discoteca veio-me com uma boa.
Ele tinha sido multado em € 500,00. O alarme tinha disparado, causando grande incómodo aos moradores da zona. Não tinha havido nenhuma intrusão.
O argumento dele era o seguinte. Tinha cedido a exploração da discoteca a uma outra pessoa. Até tinham feito a respectiva escritura pública, perante o notário.
Havia uma cláusula segundo a qual todas as multas, coimas e taxas seriam pagas directamente pelo indivíduo que explorava a discoteca. Mas a realidade é que este não pagou a multa devida pelo facto de o alarme ter disparado acidentalmente.
A defesa dele consistia em dizer que não era ele o responsável.
Bom, se fosse assim, a vida era fácil. Bastava que cada um de nós assinasse, com outra pessoa, um contrato, dizendo que o outro é que passava a pagar as nossas multas. A partir daí, ficávamos descansados.
Expliquei-lhe que ele era o dono da discoteca. Portanto, obrigatoriamente, tinha de pagar a coima.
Depois, como ele tinha na sua posse o tal contrato, poderia exigir à outra pessoa que lhe entregasse a quantia respectiva.
Mas, perante o Estado, o único responsável é o proprietário.
É isto que significa a inexistência de eficácia externa dos contratos.