quinta-feira

A BILHA NA CABEÇA




Por vezes, os acidentes de viação não resultam exactamente de imperícia ou distracção do condutor.
Em tempos, fui o feliz proprietário de um Mini Moke. Era o simpático descapotável, construído com base no velho Mini de sempre. Sem portas, com umas coberturas de plástico, que serviam de tejadilho e desprovido de verdadeiro porta-bagagens, era um divertido veículo para o Verão.
Durante muito tempo, estes veículos constituíam uma presença constante no Algarve, para alugar a turistas.
As rodas tinham apenas três parafusos, que uniam a jante ao eixo. Com o fim da produção dos Minis originais, começaram a escassear os stocks de algumas peças. Entre elas, contavam-se estes parafusos, que raramente exigiam substituição. Quando se tornavam necessários, tinham de ser importados de Coventry, em Inglaterra.
Por causa disso, apanhei um valente susto.
Eram frequentes os furtos de peças de Minis.
Sem disso saber, tinham-me tirado, durante a noite, um dos parafusos da roda. Alguns veículos contam com quatro ou cinco porcas, que são retiradas ao substituir um pneu.
Mas as rodas do Moke assentavam em apenas três pontos, devido à sua dimensão.
Ainda devo ter circulado durante mais de dois quilómetros. Mas, em segundos, dei pela roda a movimentar-se, saltando de imediato do veículo. Foram inúmeros os saltos que o carrito deu, despistando-se até se imobilizar na berma da estrada.
Felizmente, era uma zona pouco frequentada e ninguém foi atingido. Eu não cheguei a sair do assento do condutor.
Este é o género de sinistro em que não é culpado o que segue ao volante da viatura.
Todavia, caso haja danos, a respectiva companhia de seguros é obrigada a indemnizar as vítimas. Tudo por força de um princípio designado como responsabilidade pelo risco. Pelo simples facto de um indivíduo ser proprietário de um automóvel, tal significa que contribui para que haja um risco de serem causados sinistros. Portanto, a mera posse de um veículo confere o direito de serem indemnizadas todas as pessoas que venham a sofrer com um acidente originado pelo mesmo, ainda que não haja um culpado determinável.
A cena quase que parece saída de um filme de desenhos animados dos anos cinquenta.
Mas, infelizmente, ocorreu realmente.
Um homem levou com uma bilha de gás, completamente cheia, mesmo em cima da cabeça.
Miraculosamente, sobreviveu e foi conduzido ao Hospital de Vila Franca de Xira.
No entanto, aquilo afectou-lhe muito a vida profissional dele.
Era um homem de 45 anos de idade, que havia sido proprietário de um conhecido restaurante de Alcobaça.
Deixou o negócio para se dedicar ao comércio de camarão congelado.
Naquele dia fatídico, na zona de Alcoentre, ele encontrava-se com o filho, num veículo comercial. Ao volante, ia o descendente, ocupando o pai o lugar do passageiro.
À frente, ia um camião carregado de bilhas de gás. Ainda por cima, iam todas cheias.
Ora, precisamente no momento em que o filho da vítima ultrapassava o pesado, começaram a cair botijas, mal acondicionadas na respectiva caixa de carga.
Logo a primeira bilha quebrou o pára-brisas da outra viatura e assentou em cheio na cabeça do passageiro.
Após um longo período de internamento, a vítima teve alta, mas com sequelas definitivas.
Estes casos normalmente, são resolvidos, com rapidez, pelos tribunais.
Infelizmente, não foi o caso.
É preciso conjugarem-se uma série de azares para alguém levar com uma bilha de gás na cabeça.
É necessário que as bilhas estejam mal acondicionadas.
É preciso que elas saltem exactamente quando se dá a ultrapassagem.
Depois, é essencial que caiam mesmo na zona do pára-brisas.
Também nos tribunais reuniram-se uma série de circunstâncias desafortunadas. O caso levou catorze anos até ser decidido.