terça-feira

A EMBAIXATRIZ, O CARDEAL, O MINISTRO E O POLÍTICO MORTO

Uma Embaixatriz. Um Cardeal. Um Ministro. Um político que se estatela no chão, caído de um terceiro andar.
É um cliché dizer que a realidade ultrapassa a ficção.
E efectivamente, estes ingredientes não pertencem a um romance, mas sim a um caso bem real.
Tudo começou no Chiado, em Lisboa. Corria o Verão de 1958.
À data, o casal de Embaixadores do Brasil residia na zona. A sua casa confrontava com as traseiras da sede da polícia política, na Rua António Maria Cardoso.
Pois, no primeiro dia do mês de Agosto, a Embaixatriz assistiu a algo de impressionante. Um preso político lançou-se de uma janela e perdeu a vida, com a defenestração. Tratava-se de Raul Alves, militante comunista.
Era demais. Já era frequente ouvir os gritos de dor dos prisioneiros torturados, durante os interrogatórios. Agora, ultrapassava todos os limites assistir a alguém que, tão maltratado pelas sevícias, vê como solução atirar-se de um terceiro andar, para colocar termo às mesmas.
A mulher do Embaixador foi particularmente inteligente. Poderia ter-se queixado ao marido, pura e simplesmente. Ou, então, comunicar directamente com o Ministro do Interior, que superintendia a PIDE.
Porém, decidiu fazer as coisas de outra forma. Era pouco viável uma Embaixatriz pretender convencer o governo a mudar alguma coisa nos métodos daquela tenebrosa polícia.
Ela sabia bem que o Cardeal-Patriarca, Manuel Gonçalves Cerejeira, era muitíssimo próximo do regime e amigo de longa data de Salazar.
Resolveu, pois, escrever uma carta ao clérigo, pedindo-lhe a sua intervenção, no sentido de que não fossem utilizadas práticas condenadas pelo Evangelho e pela Humanidade. Fez alusão aos constantes gritos aflitivos.


PROTEGER OS CRISTÃOS

Cerejeira deu imediato andamento ao assunto.
Escreveu a Trigo de Negreiros, Ministro do Interior
Sem mencionar a identidade da Embaixatriz, referiu-se a ela como “pessoa de toda a responsabilidade”.
Cerejeira demonstrou saber que a PIDE torturava os presos políticos. Dizia ele que se sentia tentado a temer que os berros de sofrimento e aquele lançamento da janela eram “fruto de sevícias exercidas pela acção policial”.
Habilmente, compensava esse seu receio com a certeza de que nem tudo o que se ouvia era verdade. Esclarecia que “certa propaganda não recuava diante da mentira e da calúnia, para comprometer toda a autoridade”. A questão é que, naquele caso, a fonte era, realmente, digna de crédito.
Em resposta, o Cardeal-Patriarca recebeu duas missivas tranquilizadoras.
O governante asseverou que não havia maus-tratos a presos. Rumores desse tipo eram “fruto das paixões e da especulação política”.
O director da PIDE explicou que o preso que se lançara da janela fizera-o no decurso de uma tentativa de fuga. Relativamente a gritos, eram provenientes de familiares de detidos. Criavam alarido, na hora das visitas.
De resto, Neves Graça elucidava algo de importante. Uma das suas missões era precisamente a de defender o cristianismo. Ele protegia os fiéis dos perigosos comunistas. Portanto, a sua organização era vítima das maiores infâmias, somente por salvar os “crentes em Deus da fúria sanguinária e destruidora da heresia mais diabólica que tem aparecido na face do Mundo”. Dir-se-ia que PIDE significava Protectora de Igreja, Deus e Evangelho…
Os factos encontram-se relatados na interessantíssima biografia escrita por Irene Pimentel e intitulada “Cardeal Cerejeira – O Príncipe da Igreja”.