quinta-feira

FUNCIONÁRIO PÚBLICO NA PRISÃO



É normalíssimo debater a política penal. Criminalizar determinadas condutas ou despenalizar certos factos faz parte das opções que se vão tomando ao longo dos tempos.
Não me admira que algumas pessoas defendam que deveria ser permitida a existência de slot machines ou vídeo poker em cafés.
Seria relativamente normal que um sindicato viesse pugnar para que o artigo 385 do código penal fosse revogado. Se um funcionário público fica pachorrento, começa a engonhar e é indolente, propositadamente para sabotar ou boicotar o cumprimento das suas funções, arrisca-se a levar com um ano de prisão.
Qualquer dia ainda se lembram que caçar tordos após as quatro da tarde poderia deixar de ser punido. É perfeitamente concebível que surja essa ideia.
É viável pelejar para que as casas de alterne ou os prostíbulos sejam autorizados.
Agora até propõem que se legalize a venda de drogas leves. A esse respeito, note-se o seguinte. Quem tem essa opinião, em primeiro lugar, poderia sugerir que o consumo não fosse proibido. Continua sendo ilícito, embora já não constitua crime, em determinadas circunstâncias.
Ora bater-se por uma alteração legislativa, argumentar que certa norma incriminatória deveria ser eliminada, não equivale a instigar à prática de um delito ou fazer a sua apologia.


EM FLAGRANTE

Um jornalista é livre de divulgar imagens do cometimento de um crime, ocorrido à sua frente. Até tem a faculdade de emitir a sua opinião, afirmando que, na sua perspetiva, aquilo não deveria ser alvo de censura legal.
Foi o que sucedeu em fevereiro de 1976.
Por essa altura, vigorava um código penal aprovado por D. Carlos, então príncipe regente, antes de suceder a seu pai no trono. Eu trabalhei em imensos processos judiciais aos quais ainda era aplicável tal diploma, datado de 1886.
A RTP emitiu uma reportagem precisamente intitulada “Aborto não é um crime”. Numa época em que toda a espécie de interrupção voluntária de gravidez dava cadeia, incluindo as situações em que havia ocorrido violação da mulher.
O documentário incluía filmagens efetuadas numa pseudo-clínica da Cova da Piedade. Assistia-se à abominável operação de pôr termo à vida de um ser humano que se desenvolvia no ventre materno.
O marido da repórter era o presidente da estação televisiva. O caso provocou tanto alarido que ele suspendeu logo o programa.
A jornalista foi constituída arguida, acusada de incitar à prática de crimes.


NO BANCO DAS RÉS

Passaram mais de 3 anos até ser marcado o julgamento.
Como explica a encarregada do programa, o processo judicial assumia claros contornos políticos. Ciclicamente, ela era convocada para a polícia judiciária, que tentava saber quem eram as pessoas que haviam participado no horrendo aborto.
Se as coisas iam mais para a esquerda, deixavam-me em paz. Se viravam à direita, era de novo chamada”, conta aquela que viria a ser vice-presidente do seu sindicato.
Não lhe foi fácil arranjar advogado.
O filho já tencionava seguir Direito. Todavia, era um adolescente, ainda a finalizar o ensino secundário. Mais tarde, veio a ser ministro da justiça.
O irmão dela tinha andado pela barra dos tribunais, mas abandonara o exercício da advocacia.
Lá encontrou um outro mandatário, que, à última hora, terá desistido de a defender. O julgamento estava marcado para uma segunda-feira, no tribunal da Boa-Hora. Na véspera, portanto um domingo, o jurista comunicou que não iria estar presente.
Maria Antónia Palla, a responsável por aquele documentário, estava aflita. 
Conseguiu que uma excelente causídica pegasse no caso. Tratava-se de Lia Viegas, ela própria uma ativista que defendia a legalização do aborto.
A poucas horas de se iniciar a audiência, era indispensável estudar o processo. Porém, naqueles tempos, não era fácil obter um adiamento por tal motivo.
A ré obteve um atestado médico de favor, simulando encontrar-se doente. Lá se protelou a sessão, que ficou agendada para a semana seguinte.
Não só graças ao magnífico trabalho da defensora, mas também devido à competência do juiz, Afonso de Melo, tudo terminou com uma justa absolvição.
Os acontecimentos são relatados na autobiografia da mãe de António Costa, líder do Partido Socialista. É co-autora Patrícia Reis.