domingo

POCILGA



Volto à obra em que Isaltino Morais descreve os 427 dias que passou enclausurado.
Depois de Jorge, meu cliente, ter morrido em circunstâncias nunca esclarecidas, o principal companheiro do autarca passou a ser um indiano, de nacionalidade portuguesa.
Homem inteligente, de trato afável, passava horas a jogar à sueca com o autarca. É conhecido por curiosa alcunha, Nariz, que aqui utilizarei, não por falta de respeito, mas apenas para omitir o seu nome verdadeiro.
Certa vez, o edil a cumprir pena na Carregueira recebeu duas encomendas entregues pela mulher. Numa caixa plástica, vinham bifes de frango bem temperados. Noutra embalagem muito parecida, estavam uns secretos de porco preto.
Isaltino decidiu repartir a comida com o recluso hindu. Sabendo que ele professava a religião muçulmana e que seguia rigorosa dieta 100% halal, estava fora de questão oferecer-lhe a carne suína.
De maneira que optou por ceder o alimento avícola. Por azar, confundiu os recipientes e o Nariz levou com os secretos. Dado que permaneciam em celas distintas, comeram separadamente. Já era tarde demais quando o político se apercebeu do engano.
- Soube-me tão bem aquela vitela, mesmo tenrinha – disse-lhe o colega, em jeito de agradecimento.
O oeirense não teve coragem de desfazer o equívoco.


DELICADEZA

Ou então, Dr. Isaltino Morais…
Bem vistas as coisas, não se trataria de diplomacia do seu amigo?
Ele viu logo que era bácoro e nem sequer provou. Passou a refeição a alguém lá do cárcere.
Depois, para se escusar a melindres, lembrou-se daquilo da tenra vitela.
Só o próprio Nariz saberá dizer, após se deliciar com a leitura do magnífico volume “A Minha Prisão”.


DEFESAS INCOMPATÍVEIS

O tal Nariz simpatiza pouco comigo. Os parentes dele detestam-me.
A mim, não me pesa a consciência.
Apenas cumpri o meu papel, vali ao meu cliente, o que inevitavelmente implicava prejudicar o indiano. No fundo, tratava-se de saber quem liderou uma operação que rendeu dinheiro fácil, em poucas semanas.
Em Direito, trata-se do que se designa por defesas incompatíveis.
A dupla dedicava-se a utilizar cartões de crédito clonados, comprando material tecnológico, posteriormente vendido no estrangeiro.
Após faturar uma grossa maquia, o David viajou para o Brasil, onde provavelmente nunca seria incomodado se a ganância não falasse mais alto.
Por razões familiares, o indiano permaneceu no nosso país. No entanto, começou a ser interrogado pela Polícia Judiciária e apercebeu-se de que a sua prisão poderia estar iminente.
Com o desespero, iludiu-se. Decidiu colaborar. Um inspetor forneceu-lhe o número do seu telemóvel e os dois passaram a dialogar frequentemente. O objetivo era atrair o comparsa de volta a terras lusas. Com tal ajuda, o Nariz esperava indulgência e escapar a severa punição. Tramou-se.
Desinquietou o amigo que se encontrava tranquilamente do outro lado do oceano. Contou-lhe que havia perspetivas de um negócio ainda em maior escala, que lhes traria verdadeira fortuna num abrir e fechar de olhos.
Para demonstrar o seu entusiasmo, o Nariz tratou de tudo. Marcou e pagou as passagens aéreas. Reservou quarto num hotel de 5 estrelas.


DO HOTEL PARA A PRISÃO

Foi a vez de o David cair numa armadilha.
Dois dias após chegar a Lisboa, elementos da PJ detiveram-no naquela unidade hoteleira.
O indiano ainda se fingiu de admirado. Surgiu na penitenciária, com um ar muito pesaroso devido ao infortúnio do amigo. Não compreendia como é que os investigadores tinham descoberto o esquema. Mas também a verdade é que era o David a comprar o equipamento de configuração dos cartões, em Hong Kong. E era igualmente a ele que lhe competia adquirir os dados dos títulos clonados.
Para proceder à visita no xadrez, o hindu alegou ser primo do recluso e a diferença de etnia não terá gerado surpresa.
Uma semana depois, acabou o sossego índico. Nariz foi agarrado e ficou em prisão preventiva, tal como o companheiro traído. Este último contactou-me a mim e pediu que o defendesse.
Expliquei-lhe:
- A situação é complicada. Mas vamos arranjar maneira de encurtar a sua estadia na cadeia. Temos de provar que Você era um mero subordinado, cumprindo as ordens do Nariz, que planeou tudo.


O FIM

É verdade que o indiano beneficiava de uma boa inserção familiar e profissional. Casado e com filhos, desenvolvia uma atividade profissional séria antes de ser engavetado.
Para contrariar a desvantagem, propus ao meu cliente que contraísse matrimónio ali mesmo na prisão, com uma moça solteira, que ele tinha conhecido meses antes. A conservadora celebrou o casamento e o David passou a beneficiar de novo estado civil, aliado a forte vontade de constituir família com descendência, logo que lhe fosse concedida a liberdade condicional.
Terminado o julgamento, tudo acabou como eu previa.
O Nariz levou pela medida grande e apanhou com nove anos de prisão. O meu constituinte foi condenado a cinco anos e meio, o que, devido ao seu bom comportamento, lhe facultou uma libertação condicional algum tempo depois.
O balanço da sucessão de ratoeiras é este.
O Nariz perdeu um amigo, que já saiu do xelindró. No julgamento, apanhou-me pela frente, a defender um arguido em rota de colisão com ele. O indiano foi sancionado pesadamente, como líder do grupo. Se tivesse deixado o outro em paz no Brasil, poderia declarar que apenas seguia as orientações do fugitivo. Quando chegar o momento da sua libertação, o islâmico viverá o resto dos seus dias sempre receoso de uma hipotética vingança.