quarta-feira

QUERELA



A carreira jurídica de acesso mais restrito é a de conservador.
Há uma quantidade elevadíssima de candidatos interessados em ter a seu cargo o registo de nascimentos, casamentos, propriedade de imóveis, aquisições de empresas e titularidade de automóveis.
Como acontece em qualquer cargo público, existe numerus clausus. As vagas são limitadas. Há um afunilamento notável. De maneira que só é recrutada a crème de la crème.
Naturalmente, verifica-se uma certa tendência para que o acesso a profissões do Direito se torne cada vez mais exigente. Com o andar dos tempos e como sucede em qualquer ocupação, as condições necessárias avolumam-se. Por outro lado, são mais os aspirantes aos vários ofícios.
É normal os jovens concluírem que os mais antigos não atravessaram um percurso tão complicado para poderem exercer a função que pretendem alcançar.


PSICOLOGIA

Porém, nalguns casos, quer-se mesmo ir longe demais, formulando requisitos que não se justificarão.
Eu pertenço ao primeiro curso de magistrados que foi precedido de uma avaliação psicológica. Até concordo com tal entrevista, porque é a forma de excluir indivíduos com perturbações mentais. Mas ainda hoje é matéria controversa. Não pode equivaler a selecionar militares ou pilotos de aviação civil que têm de corresponder a determinadas caraterísticas de personalidade.
Mais tarde, já como membro do conselho de gestão do centro de estudos judiciários, participei no debate respeitante à forma de escolher e formar juízes e procuradores.
Cardona Ferreira era presidente do supremo tribunal de justiça. Defendia a aprendizagem durante um período de cinco anos, após a conclusão do curso universitário.
Figueiredo Dias, o professor mais antigo de Direito Criminal, pugnava por um exame de Estado para todos os juristas, à semelhança da Alemanha.
Cunha Rodrigues, procurador-geral da República, tinha uma posição bem mais moderada. Chamava a atenção para a boa preparação académica nas faculdades e para a inutilidade de impor um regime mais complexo do que é comum na União Europeia.
Eu alinhei por esta última orientação. Há sempre maneiras de dificultar ainda mais o ingresso numa atividade. Mas nem sempre tal significa que os profissionais sejam mais competentes.


O SR. DR. M. PINTO DA ORDEM DOS ADVOGADOS

É compreensível que os candidatos à advocacia se queixem de alguns estorvos que considerem desadequados.
Há tempos, um jovem de 21 anos escrevia uma carta aberta num jornal, em que dizia:
Não declarei o estágio inútil, mas sim mal organizado e vexatório, frisando até a diferença entre o que se fazia voluntariamente e o que hoje nos é imposto pela Ordem”.
O artigo tinha como principal destinatário o “sr. dr. M. Pinto, advogado rábula a litigar de má fé”.
Estava-se em 1927. Com aquelas palavras, Marcello Caetano demonstrava não se conformar com o facto de ser um dos primeiros juristas portugueses a sujeitar-se a tirocínio prévio.
Revoltava-se contra Madeira Pinto, responsável pelo conselho distrital da corporação dos causídicos.
O dirigente havia declarado que estava sempre no seu escritório, ao dispor dos futuros colegas.
Marcello fora lá em diversas ocasiões e encontrara sempre o consultório encerrado. Por isso, afirmava que deviam estar a falar de coisas diferentes, “numa ambiguidade de termos, referindo-se o sr. dr. Madeira Pinto à presença mística e eu à presença real”.
Aquele que viria a destacar-se por um brilhante percurso docente e pela bicuda presidência do conselho de ministros protestava contra o estágio. Para ele, era um “violento manietamento que me força a confessar às pessoas que, confiadas nas distinções colhidas durante todo o meu curso, me vêm procurar, a minha falta de capacidade legal para tratar de uma simples querela ou de uma modestíssima ação civil ou comercial com processo sumário!”.





PENA MAIOR

António de Souza Madeira Pinto respondeu, mediante carta no mesmo periódico: “A Voz”. Aproveitou a oportunidade para ensinar ao mais novo a distinção fundamental no domínio penal. Os processos correcionais destinavam-se a julgar os réus que, na pior das hipóteses, arriscavam dois anos de prisão. As querelas poderiam implicar pena maior e eram decididas por um coletivo de três juízes.
Por isso, não fazia sentido aludir a “uma simples querela”. As querelas eram precisamente os casos mais intrincados.
Sem querer dar por encerrada a querela, Caetano inovou. Para começar, explicou: simples querelas não são o mesmo que querelas simples. Depois, criou a diferença entre a querela simples, sem grandes problemas, e a querela difícil, envolvendo situações críticas.
Foi assim que replicou o último ditador do Estado Novo, morto no exílio brasileiro:
Onde eu quis dizer uma querela simples (e até das mais complicadas se têm encarregado com êxito, rapazes formados, não neste ano mas no ano passado) o sr. dr. Pinto viu e fez circular um outro sentido, como se lá estivesse escrito as simples querelas”.