Adivinha-se uma lamentável batalha jurídica, que seria perfeitamente escusada. Morreu atropelado um trabalhador que prestava serviço na autoestrada, ao ser violentamente embatido pelo veículo que transportava o Ministro da Administração Interna. A matéria tem sido objeto de discussão na Assembleia da República.
Em 1943, Duarte Pacheco, Ministro das Obras
Públicas, perdeu a vida quando seguia numa viatura oficial, a alta velocidade.
Quando chefiava a oposição, Mário Soares, após ter almoçado uma bela feijoada, ia de carro a caminho de Belém, onde se encontraria com Ramalho Eanes. Tendo sofrido uma colisão rodoviária, o socialista não se atrapalhou e apanhou um táxi, de forma a manter a pontualidade. O abalo do choque depois da lauta refeição deixou-o seriamente indisposto, vitimado por uma paragem de digestão. Tal levou o político a sentir a necessidade de se justificar sobre o estado em que se encontrava.
Pouco antes de morrer na trágica queda da avioneta que partiu de Lisboa, o habilíssimo Advogado Francisco Sá Carneiro foi acusado de ter encenado um acidente de viação, para meter baixa médica.
O assunto foi amplamente debatido no
Parlamento.
O caso era este: o primeiro-ministro tinha agendado um encontro com a sua homóloga britânica, em Downing Street. De seguida, voaria com destino a Paris, a fim de estar com o presidente francês.
CONSPIRAÇÃO À PORTUGUESA
A teoria da conspiração, explanada
sobretudo pelo deputado socialista João Alfredo Félix Vieira Lima, consistia no
seguinte.
Sá Carneiro era casado, mas encontrava-se
separado, vivendo maritalmente com outra pessoa.
A 19 de maio de 1980, o líder
social-democrata embarcou no aeroporto de Lisboa, juntamente com a sua
companheira, Snu Abecassis.
Margaret Thatcher teria mudado os planos ao
tomar conhecimento de que o português viajava com a dinamarquesa. Recusava
receber os dois.
O mesmo teria ocorrido com Giscard
d’Estaing, que não abriria as portas do Eliseu ao casal.
Ao entrar no veículo que se lhe encontrava
destinado, Sá Carneiro teria ordenado ao motorista que embatesse
propositadamente no carro da frente.
A verdade é que a colisão deu-se mesmo. O
governante luso foi levado ao hospital. Apareceu, já de noite, no hotel, com um
colar cervical ortopédico no pescoço.
Não se reuniu com a dama-de-ferro e
cancelou a audiência com o estadista gaulês.
PROTOCOLO
Seria tudo uma farsa?
A Rainha de Inglaterra e a chefe do
executivo recebiam todo o género de casais, muito antes de ser autorizado o
matrimónio homossexual.
Relativamente ao então chefe-de-estado francês,
esse nunca escondeu as suas conquistas amorosas, esgotando a paciência de
Anne-Aymone. A esposa legítima conta atualmente 88 anos de idade, sendo muitíssimo
mais nova do que a supramencionada Isabel II. A antiga primeira-dama ainda recorda
bem as aventuras parisienses do marido, recentemente desaparecido por força da
covid-19.
É pouco crível que tivesse havido algum
obstáculo protocolar levantado pelas duas modernas nações estrangeiras.
MOTOCICLETA
No entanto, em São Bento, a oposição
parlamentar ainda tirava partido do ambiente próprio de um pequeno país
periférico que pretendia aderir à comunidade europeia, mas onde abundavam
mentes retrógradas.
O oportunismo partidário ultrapassou os
limites da razoabilidade.
João Vieira Lima comunicou a posição do Partido
Socialista:
- Nem a primeira-ministra britânica,
Senhora Thatcher, se deslocou ao aeroporto para receber Sá Carneiro e a sua
comitiva. Nem, ao menos, um simples polícia batedor de motocicleta se
apresentou para conduzir e guiar o primeiro-ministro português. Constou, nos
meios diplomáticos acreditados em Lisboa, a eventual existência de problema de
melindrosa natureza protocolar. O ridículo é sempre detestável, mesmo quando se
instala naqueles a quem nos opomos.
Depois, o parlamentar tentou explicar-se:
- Não está em causa, Senhor Presidente,
Senhores Deputados, nem a vida privada de ninguém nem tão-pouco as viagens do
Senhor Primeiro-Ministro. Está em causa, sim, a dignidade do nosso país.
Ironicamente, quis ainda deixar claro ser
do seu conhecimento que Sá Carneiro fora “vítima
de um inesperado acidente de viação e cabe aqui desejar-lhe as melhoras”.
Como se houvesse acidentes esperados…
Mesquinhamente, António Arnaut, também da
bancada socialista, decidiu dar uma ajuda, para condenar o que constituía, no
entender dele, “um verdadeiro vexame
político e diplomático para o nosso país”.
MERAMENTE ACIDENTAL
Embora adotando estilo diverso, revelando
maior classe, com mais categoria e de modo menos ostensivo, o comunista Carlos Brito
aproveitou-se da confusão e declarou: “nós
não entendemos que se trate apenas de um acidente de automóvel. Portanto, temos
de analisar o que se passou em Londres no quadro da política externa”.
Ensaiou o argumento de que era uma
controvérsia lógica, aceitável e natural. Por isso, perguntou:
- Não há que questionar o Ministério dos
Negócios Estrangeiros por aquilo que se passou? Mesmo que se trate apenas de um
acidente, embora ninguém se convença disso.
Vital Moreira, à época militante do PCP,
virou-se para as bancadas da Aliança Democrática, atirando:
- Já nem a Thatcher vos apoia!