Certa vez, sucedeu-me um caso, em sentido oposto. Havia confissão. Mas não existia nenhuma outra prova.
Até hoje, é a única situação que me deixou sem dormir, durante algumas noites. Nunca pude esquecer o caso daquela mulher que dizia ter morto o marido, mas sem explicar muito bem como o tinha feito.
Passaram já muitos anos. Porém, não deixo de pensar no intrigante acontecimento.
DE MADRUGADA
Eram praticamente quatro da manhã quando o telefone tocou no posto da GNR. Uma senhora afirmava ter assassinado o marido.
Eu era o único juiz da comarca. Por isso, competia-me também a instrução criminal.
Interroguei a suspeita, pouco depois das nove.
Ela morava numa pequena habitação, situada num meio rural. Partilhava a casa com o marido e o filho, de 17 anos. Importa aqui recordar que, a partir dos 16 anos de idade, um indivíduo pode ser preso e condenado pela prática de um crime, sendo considerado adulto pela lei criminal.
Naturalmente, o recentíssimo processo continha poucas folhas. Muitas delas eram compostas por imagens fotográficas. Era bem visível o orifício de entrada do projéctil na testa do morto, contra quem fora disparado um tiro de pistola.
O crime ocorrera pouco depois da uma da manhã.
De acordo com o relato da arguida, o esposo chegara embriagado a casa. Era algo que ocorria frequentemente. Como também sucedia amiúde nessas ocasiões, ele desatou a bater na mulher.
Até aí, poucas dúvidas me surgiram.
A pistola pertencia à própria vítima. A mulher hesitava quanto ao local onde a arma se encontrava, antes de ela a utilizar. Com pouca convicção, indicou a mesa-de-cabeceira. Disse não se recordar se pegara na arma de fogo com a mão esquerda ou com a direita. Encontrando-se o finado sobre a cama do casal, ela titubeou quando a questionei se ele se encontrava de pé, antes do disparo fatal.
Depois, foi pouco esclarecedora quanto ao filho do casal. Inicialmente, contou-me que ele estaria num café, no momento do delito. Era inaceitável, pois não havia nenhum estabelecimento aberto àquela hora. Rectificou, dizendo que o jovem se encontrava no seu quarto. Não se apercebera da chegada do pai, dado que ouvia música com um volume de som elevado.
Nada mais me restou senão decretar a prisão preventiva da confessa homicida. Recolheu à cadeia de Tires, aguardando o julgamento.
A PÓLVORA
Esperava eu que, de imediato, se fizessem testes de pesquisa de pólvora nas mãos de algumas pessoas. Pelo menos, nas da arguida e nas do seu filho. Os resíduos mantêm-se durante algumas horas, sendo impossível ao homicida eliminá-los.
Após eu determinar a prisão da senhora, o processo regressou ao Ministério Público e, atenta a natureza do crime, a respectiva investigação cabia à PJ, sob a direcção do magistrado responsável.
Pois decorrida uma semana, os autos foram colocados no meu gabinete. Tratava-se de eu autorizar uma diligência meramente burocrática.
Analisei todas as folhas do processo.
Nada fora feito.
Como a arguida havia admitido a autoria do crime, nenhuma perícia fora levada a cabo. As indispensáveis recolhas de vestígios nas mãos foram pura e simplesmente ignoradas.
Fui atingido por uma perturbação que nunca sentira antes. Imaginei a mulher, encerrada na cela da cadeia, a centenas de quilómetros dali. Veio-me à memória a forma como ela vacilou ao confessar ter morto o marido, que a enchia de pancada. Lembrei-me do modo como se referiu ao filho e das diferentes versões que apresentou a respeito dele.
Passado aquele tempo, já não há vestígios sólidos nem gasosos de pólvora alguma. O assassino ou a assassina já estão completamente livres desses resíduos. Nada mais se poderia fazer nesse domínio.