quarta-feira

O SÓSIA



O caso não deixava muita margem para dúvidas. As vítimas tinham anotado a matrícula da viatura. Ainda por cima, tratava-se de um Skoda, quando a marca era menos vulgarizada do que hoje em dia. Dificilmente teria havido algum engano.
É claro que não havia certezas quanto ao condutor.
Em todo o caso, ele tinha sido avistado pelos sujeitos que apanharam o susto da vida deles. Além disso, o arguido assegurava ser o único a guiar aquele automóvel. Aliás, pouco tempo antes, ficara viúvo.
Os queixosos eram quatro pessoas que seguiam num outro carro. Ultrapassaram o tal Skoda, mas de tal maneira que o respetivo automobilista considerara incorreta. Entrou em fúria, sacou de uma pistola e pôs-se a disparar sobre o veículo que já seguia à sua frente.
Felizmente, não se registaram danos pessoais. Apenas houve alguns estragos na carroçaria.
O atirador desapareceu. Os amedrontados ocupantes da outra viatura pararam logo na esquadra junto à Siderurgia Nacional, ali bem perto.


DESCONTROLO

Marquei o julgamento para uma sexta-feira à tarde. O acusado asseverou-me que nunca passara por aquela estrada, em toda a sua vida. Realmente, ficava algo distante da sua residência e nada próxima do respetivo local de trabalho.
No entanto, havia efetivamente orifícios de projéteis na outra viatura. Os ofendidos não deveriam estar a congeminar uma aterradora aventura. As partes nem sequer se conheciam. Não havia razão para vinganças ou planos de conspiração.
Por esta altura, as vítimas ainda permaneciam em recato, na sala de testemunhas.
Decidi interromper o julgamento e marcar a continuação para a semana seguinte.
Entretanto, troquei impressões com a magistrada do Ministério Público.
Naquela época, a lei era mais permissiva quanto aos reconhecimentos de pessoas na audiência. De modo que propus-me arranjar dois homens algo parecidos ao arguido.
Foi, então, que a procuradora-adjunta teve uma ideia genial:
- Um deles tem de ser o Carlos Pinheiro, o funcionário da secretaria cível.
É que ele não tinha só parecenças com o acusado. Era um verdadeiro sósia! A altura era praticamente a mesma, a rondar um metro e oitenta. Ambos eram corpulentos. Até o cabelo e o penteado eram impressionantemente idênticos.
O segundo escolhido foi também um funcionário judicial, com algumas semelhanças. Mas, como diz o Herman José, esse já não tinha “comparência”. Sósia não era certamente.
No dia aprazado, lá compareceram todos.
Mandei entrar a primeira das testemunhas, um dos que seguia no veículo atingido.
Ele olhou atentamente para os três sujeitos à sua frente e respondeu-me: “foi este senhor”. Apontou para o Carlos, que certamente percorreu muitas vezes aquela estrada, mas numa carrinha de marca francesa, com uma matrícula completamente diversa da que tinha sido fornecida à polícia.
Realmente, a missão daquele depoente não era fácil. À sua frente, ele tinha dois homens que eram quase iguais. Se pusessem o arguido atrás do balcão do tribunal, toda a gente iria pensar que era o Pinheiro.
Curiosamente, com as outras três testemunhas, não ocorreu o mesmo. Optaram pelo acusado, quando se tratou de identificar quem tinha disparado as munições.
De modo que lá condenei o indivíduo a uma pena suspensa, na certeza de que fora ele realmente o sujeito que se enraiveceu perigosamente naquele dia.