sábado

MORREU E DEPOIS NASCEU


O Alto do Seixalinho é uma das 7 freguesias do Barreiro. A respectiva Junta publica um “boletim informativo”, distribuído gratuitamente aos fregueses que habitam naquela circunscrição.
Como é habitual, a edição de Dezembro contém a pedagógica rubrica “Saiba Porquê”, que ministra valiosos ensinamentos ao leitor ávido de aprender através daquela preciosa lição.
Com a aula, eu fiquei a saber uma coisa. Mas ficou-me a saber a amargo. Fiquei sabedor de que o opúsculo não tem revisor, que impeça o aparecimento de gralhas.
Vejamos, portanto, quem foi João da Luz, que dá o seu nome a uma das ruas da freguesia. “Nasceu no Barreiro em 1974 e no Barreiro morreu em 1955”.
Quando a mãe dele deu à luz, já ele tinha morrido. O cavalheiro nasceu em 1974. Mas já tinha sido enterrado em 1955. Seria luz divina, num acto de ressurreição?
Agora está-se-me a fazer luz. Talvez tenha havido uma troca de datas. O senhor veio ao mundo em 1955 e, depois, faleceu em 1974.
Mas atenção. O sujeito foi presidente de uma sociedade de instrução e recreio, “por várias vezes as quais somaram mais de vinte anos”.
Ora assim não dá. Não bate certo. O indivíduo perdeu a vida aos 19 anos. Mesmo tendo sido nomeado presidente à nascença, não se completam as tais duas décadas. A não ser que lhe tenha acontecido o mesmo que a Kim Il Sung, que se finou em 1994 e oficialmente continua a ser o Presidente Eterno da Coreia do Norte.
Além disso, há outra coisa. O Sr. João da Luz “foi Presidente da Comissão Executiva da Câmara Municipal do Barreiro em 1917”. Curto mandato, mas incompatível com o seu nascimento em 1955, 1974 ou lá o que é. Estou completamente às escuras.

 

LUZ VERDE PARA A ASNEIRA

Uma coisa fica para a história.
João da Luz era “homem simples de qualidades de trabalho extraordinário”. Presumivelmente nos Caminhos de Ferro, onde desempenhava as funções de “contramestre geral das oficinas”.
Quer-me parecer que pretendiam dizer que extraordinárias eram as qualidades de trabalho dele. Mas ficou registado “trabalho extraordinário”. Assim no singular.
Bem… eu também não duvido que ele fosse pessoa para ficar a laborar para além do horário normal e fizesse umas horas extraordinárias.
Este educativo texto não terá dado assim um trabalho extraordinário ao mestre responsável pela rubrica instrutiva.
Foi só copiar de uma acta da câmara municipal.
Logo por azar, o sábio redactor não sabe fazer citações. Não mencionou qual a data da sessão que reuniu o executivo municipal.
Com esta didáctica rubrica “Saiba Porquê”, ficamos impossibilitados de saber por que é que se deu o erro. É a acta que está incorrecta e, ao copiar, o colunista não deu pelo lapso? Ou será que na acta está tudo bem e ele copiou mal?

 

SABER PORQUÊ

Uns tempos antes de meu Pai morrer, confrontei-o com algo que me intrigava.
Tendo ele presidido à Câmara Municipal do Barreiro, nunca impôs grande rigor na redacção das actas do executivo. Era professor e conhecido pelo perfeccionismo. Em quase tudo na vida, procurava ser tão exacto quanto a matemática que ensinava.
Contudo, no executivo camarário, permitia que as actas ficassem escritas de modo menos cuidado.
Muitos anos mais tarde, quando o questionei sobre a matéria, respondeu-me de forma simples. Para a história, ficou a sua obra. O acervo documental revestiria menor importância.
Não fiquei muito convencido.
Eu admiti que o Barreiro sofreu um progresso notável enquanto meu Pai presidiu à Câmara. Aliás, num estudo universitário, tal período foi qualificado como os “golden years” do concelho. Não faltavam empregos bem pagos. Inauguraram-se dezenas de talhos, marisqueiras e ourivesarias.
Mas não deixei de manifestar a minha opinião de que a memória escrita merecia alguma atenção. E contei a meu Pai que eu, no tribunal, determinava precisão nas actas dos julgamentos. Sem dúvida, julgar bem é o mais importante. Mas o que fica escrito assume o seu relevo.