domingo

SUICÍDIO NO ALENTEJO



Felizmente, são raros os casos em que os maus-tratos infligidos a uma criança passam mais ou menos despercebidos e acabam com uma morte trágica, como sucedeu no caso da infeliz Valentina.
No passado, provavelmente haveria tantas ou mais situações com semelhante gravidade. Mas talvez não causassem igual impacto mediático.
Se fosse vivo, hoje teria 78 anos um habitante de São Bartolomeu do Outeiro, que teve uma infância profundamente triste.
Em 1953, ele contava 11 anos e frequentava a 3ª classe. Ia reprovando sucessivamente, evoluindo lentamente na aprendizagem. Arrastava-se pelo que hoje é o 1º ciclo do ensino básico, os primeiros quatro anos escolares.


PORTUGUÊS SUAVE

Em matéria de educação, a política do Estado Novo era peculiar e apresentava contradições.
Na década de 1940, celebraram-se dois centenários. Passavam 800 anos sobre a fundação de Portugal. Decorriam 3 séculos desde a restauração da independência, após 60 anos de jugo espanhol.
A grandiosa exposição do Mundo Português assinalou o momento, em Lisboa.
Por todo o país, foram erguidas novas escolas primárias, seguindo um mesmo modelo arquitetónico concebido por Rogério de Azevedo, ao estilo Português Suave.
Desenvolvendo o parque escolar, o plano dos centenários foi executado ao longo de 28 anos.
Nestas construções, estavam presentes arcos, nas paredes caiadas do sul do país. A norte, onde o granito era utilizado, havia alpendres e lareiras.
Somavam-se aos estabelecimentos edificados ainda no século XIX, graças ao benemérito Conde de Ferreira.
Mas enquanto se criavam boas infraestruturas para o ensino gratuito das primeiras letras, com uma rede de ampla cobertura geográfica, a política salazarista impunha redução de despesas a todos os níveis, incluindo o pessoal docente. Apesar de haver professores qualificados, era dada preferência a regentes escolares, pessoas sem as necessárias habilitações, mas que improvisavam o serviço por vencimento mais baixo.
Para os gastos não serem altos, as turmas acumulavam muitos alunos, por vezes mais de 40. Quando possível, separavam-se as meninas dos meninos. Só nos meios mais pequenos, havia classes mistas.
Preferencialmente, os regentes e professores varões ensinavam rapazes. Preveniam-se riscos quanto a avanços sobre as alunas. As senhoras podiam ter a cargo classes femininas ou masculinas.


ABANDONO

Assumia-se uma lógica elitista.
Alguns estudantes abandonariam a escola. Outros aprenderiam a ler e escrever, adquirindo as noções básicas da aritmética e ficando pela 4ª classe. Apenas uma minoria prosseguiria os estudos nos liceus ou nas escolas técnicas.
O resultado era a elevadíssima taxa de analfabetismo e uma população escassamente instruída, o que não colidia com os interesses do regime assente em generalizada falta de cultura.
Como um pouco por todo o mundo, toleravam-se e aceitavam-se até os castigos corporais.
Uns quantos alunos, quase sempre os mesmos, eram exemplarmente espancados perante os colegas. Nas sobrecarregadas salas de aula, não havia agitação. A disciplina mantinha-se graças ao clima de terror. Uma palavra ou um olhar de quem exercia a autoridade impunham a obediência.
A falta de conhecimentos, a indolência, as falhas no cumprimento dos deveres ou os erros puniam-se violentamente. A atenção, o brio, o esforço, a dedicação, o afinco e o esmero nas tarefas académicas incentivavam-se pelo medo.
O tempo perdido com as sovas deixava pouco espaço para a transmissão de conhecimentos.
Constituíam exceção os raros mestres que não batiam.


SADISMO

O que se passou então com aquele moço de 11 anos que frequentava a escola de São Bartolomeu do Outeiro, no concelho de Portel, a uns 40 km de Évora?
Por força dos chumbos, numa terceira classe já repetida, naquele ano de 1953, o desinfeliz menino apanhou com uma regente escolar de 21 anos de idade, sádica como poucas.
As reguadas eram tantas e administradas com tal violência que, certa vez, a mulher fora advertida pela direção-geral do ensino primário, na sequência de queixas apresentadas por pais que não suportavam ver as marcas deixadas nos seus filhos.
O aviso foi inútil. Sobrepôs-se o prazer que ela sentia em infligir dor aos pequenos que dominava. A jovem cruel não moderou as sanções.


GAZETA

O miúdo apanhava diariamente e não aguentava mais. Numa dada manhã, quando ia a caminho da escola, decidiu desviar-se do trajeto. Chegada a noite, dormiu na rua e só no dia seguinte foi localizado pelo pai.
Não podia ser pior o regresso às mãos da “professora”. Como resposta à fuga, ela sujeitou-o a um selvático ensaio de pancada e, já em casa, o pai da criança chegou a ver as suas mãos exibindo hematomas.
Dois dias passados sobre a colossal tareia, de novo na sala de aula, poucos minutos após o seu início, o rapaz sabia que, mais tarde ou mais cedo, haveria um qualquer pretexto para levar, como sempre sucedia. Então, o pobre discípulo encontrou uma forma de isso nunca mais acontecer. Levantou-se e, falando, para a regente, indagou:
- Senhora, dá licença que eu saia para ir atirar-me a um poço?
A inconsciência da mulher era proporcional ao desprezo que ela nutria pelo bem-estar dos alunos. Anuiu irresponsavelmente, convencida de que a intenção anunciada não se concretizaria.
A verdade é que, horas depois, o corpo sem vida do estudante foi resgatado do poço para onde ele se lançara, colocando termo à vida.


SUSPENSÃO

Nos dias de hoje, o desfecho deste drama seria diferente, com certeza.
À época, tal como atualmente, o código penal proibia os maus-tratos e tudo o que favorecesse o suicídio de terceira pessoa.
Mas será que a impediosa mulherzita foi presa? Respondeu em tribunal?
Nada disso.
Foi-lhe aplicada uma sanção disciplinar de seis meses de suspensão das funções, com perda do salário.
O burocrata do Ministério da Educação Nacional, que investigou o caso, considerou que o pobre garoto deveria sofrer de “problemas psicológicos”.