sexta-feira

O HOMEM QUE FOI JULGADO DUAS VEZES


Há um princípio que vigora por todo o lado.
Uma vez terminado um processo judicial, repetidos os julgamentos anulados, findos todos os recursos possíveis ou esgotados os prazos para os interpor, é impossível voltar a realizar novo julgamento relativamente àqueles factos.
Excecionalmente, uma pessoa condenada pode ser declarada inocente, em sede de revisão. Ressalvando esta situação, "ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime", como prescreve a Constituição portuguesa.
Os juristas chamam-lhe a regra do "ne bis in idem". Recorrendo ao latim, dizem que não se pode repetir (bis) o que é igual (idem).
Nos filmes norte-americanos, fala-se na proibição de "double jeopardy". Literalmente, seria um duplo risco, um perigo em duplicado. Etimologicamente, jeopardy deriva do francês "jeu-parti".



OUTRA VEZ

Esta norma tem especial importância em dois casos.
Se um arguido foi definitivamente absolvido, é inviável voltar a acusá-lo da prática do mesmo crime. Um suspeito é ilibado de um homicídio. Mesmo que surjam novas provas, ainda que ele tenha o mau gosto de O.J. Simpson e publique um livro explicando como se mata a ex-mulher, não se pode efetuar novo julgamento.
Por outro lado, quando uma pessoa é julgada num certo país, depois é inaceitável que responda pelos mesmos factos noutro Estado. Por exemplo, um correio de droga é capturado em Lisboa, após aterrar num voo proveniente da Colômbia. Cumpre pena em Portugal e, regressando ao país de origem, considera-se expiada a sua sanção.




TRANSGRESSÃO

Um colega meu, advogado, relatou-me um curioso episódio passado nos tempos em que os automobilistas eram julgados em processo de transgressão, quando violavam uma norma do Código da Estrada que poderia ter como consequência a apreensão da carta de condução.
O juiz reunia todos os julgamentos desse tipo para um determinado dia da semana, geralmente à tarde. Os acusados não eram obrigados a comparecer nem tinham forçosamente de dispor de advogado.
Rapidamente, confirmavam-se os autos policiais e aplicava-se a punição. Nalguns casos, ficava em dúvida se a infração tinha sido realmente cometida ou chegava-se mesmo à conclusão de que não tinha sido violada a lei. Então, o condutor era absolvido.



SEMÁFORO

O Jorge entendeu recorrer aos serviços de um advogado de Beja. Contra ele, tinha sido levantado um auto por haver passado com o seu automóvel quando o semáforo apresentava o sinal encarnado.
No dia aprazado, jurista e cliente compareceram no tribunal. O causídico foi à secretaria. Aproveitou para consultar um outro processo e demorou-se mais do que previa.
Quando se ia juntar novamente ao seu cliente, este acenou-lhe, ironicamente:
- Obrigadinho!
O advogado percebeu que algo de inesperado havia ocorrido.
Naquele lapso de tempo, o funcionário judicial mandara as pessoas entrar para a sala de audiências. Num instante, o juiz aviou os processos de transgressão. Por algum acanhamento, o homem acusado de desrespeitar o sinal vermelho, nada disse. Acabou condenado.
Determinado a resolver a questão, o causídico expôs o problema ao magistrado judicial. A coisa ficou logo resolvida.
De novo, perante o juiz, mas agora no seu gabinete, o arguido foi julgado com a assistência do advogado. Juntaram-se fotografias ao processo. No mínimo, levantavam dúvidas como seria possível ao agente policial ter visto que luz se encontrava acesa quando o carro passou, atento o local onde estava posicionado.
O arguido acabou absolvido. Foi como se não tivesse havido o primeiro julgamento.