Há dias, participei numa corrida radical,
que implicava atravessar o rio Judeu, na sua baixa-mar, através do lodo, que
atingia quase os joelhos. De cada vez que eu enfiava um pé na lama, demorava
algum tempo até pisar terra firme. E ainda maior era a dificuldade em retirá-lo
para dar a passada seguinte. Cortei a meta completamente enlameado e
saudavelmente fatigado.
Aquele curso de água nasce em Fernão Ferro,
localidade do Seixal conhecida pela quantidade de stands de carros usados
estrategicamente localizados à beira da estrada que vai dar a Sesimbra. Desagua
no Tejo, na baía da cidade que acolhe a Siderurgia Nacional.
PROCESSO
O meu primeiro contacto com este pequeno
rio foi estritamente jurídico.
A Câmara Municipal tinha-me submetido uma
questão curiosa, de natureza ecológica.
É politicamente correto alinhar pelas
causas mesológicas, mas eu limitei-me a aplicar a lei.
Pelo século XIX, dizia-se que o juiz era a
mera boca que pronuncia o que está escrito nos códigos. De forma pouco amável
também, na atualidade defende-se que os magistrados são reféns do Direito.
A verdade é que o tribunal decide segundo a
legislação, independentemente das convicções pessoais.
Sempre agi assim e, do ponto de vista
abstrato, a única fronteira que consigo traçar é esta: eu seria incapaz de ser
juiz num país onde vigorasse a pena de morte.
FILTRAGEM
Ora o que se tinha passado relacionava-se
com uma estação de tratamento de águas residuais em terras fernãoenses. Os
esgotos eram encaminhados para aquele equipamento e sujeitos a uma desinfeção
sumária, após o que seguiam em direção ao rio Judeu. Fundamentalmente,
filtravam-se os líquidos antes de os escoar.
É claro que não era benéfico para uma
torrente onde há alguns peixes e muitas ameijoas, a fonte de rendimento de
mariscadores que diariamente as comercializam junto de restaurantes.
Mas mais do que isso, a Inspeção do
Ambiente entendeu haver infração e aplicou uma pesada coima ao município
seixalense.
Os funcionários da capital tinham
consultado os censos populacionais e concluíram que Fernão Ferro apresentava
uma população superior a dez mil habitantes. Pesquisaram a classificação dos
rios que atravessam Portugal e verificaram que o Judeu está entre os que são
considerados sensíveis.
Num trabalho de secretaria, avisaram que as
águas das casas-de-banho e das cozinhas tinham de sofrer o chamado tratamento
terciário antes de serem misturadas com o fluxo que segue em direção ao Tejo.
Seria obrigatório transformar o esgoto quase em água mineral para ser dirigido
ao curso hídrico.
O executivo municipal não se conformou com
a sanção e impugnou-a.
LEI
Obviamente, não me foi agradável legitimar
a atitude da Câmara e proferir uma sentença que lhe permitiu continuar a agir
como até ali. Mas a lei obrigou-me a fazê-lo.
A norma jurídica aplicável não manda
atender propriamente ao número de habitantes servidos pelo saneamento básico.
Estabelece uma fórmula matemática através da qual se estima a população
mediante a quantidade de águas residuais emitidas.
Portanto, aquilo que os inspetores deveriam
ter feito não era consultar as estatísticas de residentes, mas sim medir o
volume de esgotos, recorrendo a um instrumento próprio, o caudalímetro.
Não o tendo efetuado, era impossível manter
a exigência de pagamento da coima.
Passada uma dúzia de anos, desconheço se atualmente
a estação de tratamento que remete o esgoto para o Rio Judeu já faz uma purificação
mais aprofundada.
Todavia, não dispensei o prazer de me
juntar a dezenas de atletas que correram naquelas condições tão especiais na
fabulosa prova que ficou conhecida como “River Race”.
(Após cortar a meta)