quarta-feira

RICOS E PODEROSOS




Eu, como Juiz, não conheço pobres ou desvalidos. No meu tribunal, acusadores e acusados não têm nomes nem títulos. Chamam-se réus ou autores. Não sei, se neste país, a justiça é igual para todos. Creio que não”.
Estas palavras foram proferidas por um magistrado que desempenhou funções em Vila Franca de Xira.
De certo modo, ele entrou para a história. Mas o seu filho tornou-se verdadeiramente famoso.
A questão levantada constitui assunto debatido ao longo dos tempos, nas mais diversas nações. Trata-se de saber se existe uma justiça para os ricos e poderosos e outra para os cidadãos comuns.
Em Portugal, casos recentes têm demonstrado que indivíduos colocados naquela primeira categoria são levados à barra do tribunal tal como as outras pessoas.


TRANSFERÊNCIA

Certamente, a realidade evoluiu muito desde que o juiz escreveu ao Rei de Portugal, com aquelas palavras amargas.
Estava-se em 1860 e o pai de Eça de Queiroz encontrava-se desanimado por o Tribunal da Relação do Porto ter revogado uma decisão sua envolvendo um figurão da Invicta. Por isso, o jurista pediu a sua transferência para uma comarca mais sossegada e fixou residência em Vila Franca.
Logo depois de enviar a missiva ao monarca, fê-la publicar integralmente no jornal Política Liberal.


NOTAS

O caso era o seguinte.
O Brasil conquistara a independência em 1822.
Alguém andava a introduzir, no país irmão, moeda falsa e títulos de crédito contrafeitos. Em 1855, Portugal e Brasil assinaram uma convenção para reprimir tal crime.
António Sousa Guimarães havia casado com uma filha de Constantino Vale, comerciante riquíssimo do Porto.
Quando Guimarães fez trinta e sete anos, a Rainha D. Maria II concedeu-lhe o título de Barão de Bolhão. Quatro anos mais tarde, D Pedro V elevou-o a Conde.
O nobre dava festas sumptuosas e chegou mesmo a hospedar, em sua casa, a Rainha e toda a sua comitiva.
A sua filha Júlia contraiu matrimónio com um filho do duque de Saldanha e o enlace decorreu num ambiente de enorme ostentação.
A dada altura, tornou-se notório que o dinheiro escasseava, para o Conde de Bolhão. Deixou-se das habituais opulências, que o tinham arrastado para uma situação financeira complicada.
No entanto, pouco depois, voltou a exibir o luxo de outrora, manifestando ter recuperado a sua capacidade de despender quantias fabulosas, sem qualquer preocupação.
A polícia compreendeu o que se passara.
De forma a pôr cobro ao desaire económico pessoal, o Conde de Bolhão associara-se a um alemão de péssima reputação.
Os dois dedicavam-se a fabricar moeda falsa e a forjar títulos de crédito, que eram remetidos para o Brasil.
Estavam descobertos os criminosos.
O estrangeiro fugiu antes de ser preso.
O Conde impugnou a acusação e submeteu-a à apreciação do juiz de instrução: o Dr. José Almeida Queiroz, pai daquele que viria a revelar-se um dos mais importantes escritores da cena nacional.
O magistrado encarregou-se do processo e tomou a sua decisão: o Conde seria levado a julgamento. Pronunciou o réu.



HOTEL

O Conde já não vivia no Porto desde que o seu plano criminoso fora desvendado. Encontrava-se instalado no Hotel Itália, em Lisboa. Ao tomar conhecimento da pronúncia, colocou-se em fuga. Quando o foram prender, já era tarde demais.
Joaquim António de Aguiar, Ministro da Justiça, demitiu-se, na sequência deste gigantesco escândalo.
Decorrido algum tempo, sem se perceber muito bem porquê, o réu entregou-se às autoridades e foi encerrado numa cela.
Mas tal durou pouco.
Ele tinha interposto recurso da decisão.
O Tribunal da Relação do Porto revogou a pronúncia e ilibou o Conde, restituindo-o à liberdade.
O pai de Eça ficou profundamente desgostoso com esta anulação.