sexta-feira

O PRIMEIRO CASO


António Maria Pereira, o conhecido advogado e político, que partiu aos 84 anos de idade, era também um notável contador de histórias.
Entre as muitas que me relatou, destaco a que escutei certa vez, ao jantar, na sua casa da Estrela.
À sobremesa, cachos de bananas integravam o vasto leque de frutas que eram servidas.
Ao causídico ocorreu, então, narrar o seu primeiro julgamento, enquanto jovem advogado, que deixara há pouco os bancos da Faculdade.
O caso era mesmo curioso. Mais tarde, pedi-lhe que o convertesse em texto, por forma a inseri-lo num livro em que se narravam histórias verídicas ocorridas em tribunal.
Deixo-vos com as palavras escritas por António Maria Pereira. Bon appétit…


O JULGAMENTO DAS BANANAS
Por: António Maria Pereira

Passou-se nos anos 50. Tinha acabado de me formar e de me inscrever na Ordem dos Advogados e eis que, por milagre, consigo o meu primeiro cliente: o dono de um restaurante da rua do Ouro, que ainda lá existe, onde eu ia com frequência e cujo dono, sabendo que eu já era advogado, me procura pedindo assistência jurídica.
Como ainda não tinha escritório a consulta fez-se numa das mesas do restaurante.
Tratava-se de uma acusação deduzida pela antiga Intendência Geral dos Abastecimentos (actualmente Inspecção Geral das Actividades Económicas) por especulação no preço de venda de bananas.
Aceitei, orgulhosíssimo, este meu primeiro caso profissional e pus-me imediatamente em acção. A primeira medida foi mandar fazer uma toga à costureira da minha mãe. Todos os trabalhos de costura que ela tinha em curso foram suspensos perante a exaltante tarefa de confeccionar o traje profissional para o Dr. António, que ela quase tinha visto nascer.




Seguiu-se o delineamento da estratégia de defesa. Como o crime consistia na venda de bananas a preço superior aos praticados correntemente no mercado, concluí que se pudesse demonstrar que os preços praticados pelo meu cliente não ultrapassavam os correntes teria conseguido desfazer a acusação.
Como obter essa prova? Pareceu-me que se apresentasse no julgamento testemunhas exibindo recibos de contas pagas noutros restaurantes nas quais viessem descriminados os preços das bananas consumidas, superiores ao preço das bananas objecto da incriminação, teria conseguido o meu objectivo.
Essa estratégia obrigou-nos, a mim e ao meu cliente, a jantar em vários restaurantes nos quais sistematicamente pedíamos como sobremesa bananas. Coleccionadas umas dúzias de facturas, seleccionei as que na rubrica “bananas” apontavam preços superiores aos praticados pelo meu cliente. Assim consegui organizar um dossier de defesa que me pareceu imbatível.
Aproximava-se entretanto o temeroso dia do julgamento. Nas vésperas, o stress tomou conta de mim. A concentração tornava-se-me cada vez mais difícil e o meu sono era irregular e frequentado por pesadelos em que me via em situações desesperadas na audiência, expulso pelo juiz, esquecido do discurso, acusado pelo cliente, eu sei lá que mais horrores ...
Na noite que precedeu o julgamento praticamente não consegui pregar olho. Mas o dia começou e lá me arrastei, mais stressado que nunca, para o antigo Tribunal Correccional no Calhariz. Visto a toga e ocupo a secretária destinada aos advogados, aguardando a chegada do meritíssimo e do Delegado do Ministério Público.



Passados uns minutos, estes chegam, envergando as suas becas negras e sentam-se nos lugares respectivos. O escrivão grita: “todos de pé !” Após o que me aproximei dos magistrados para os cumprimentar.
Todo este ritual acentuava a solenidade do momento, que para mim era uma iniciação histórica.
Aberta a audiência, o oficial de diligência foi buscar o réu e indicou-lhe a cadeira que lhe era destinada. Seguiram-se as perguntas da praxe e passou-se à inquirição da lª testemunha a qual, mostrando um recibo, confirmou que o preço das bananas que ela havia comprado no mercado era superior ao praticado pelo meu cliente. O mesmo aconteceu com a 2ª e 3ª testemunha. Tudo corria portanto, tal como previsto, da melhor maneira. Ao ponto de me parecer vislumbrar através do modo como o juiz interrogava as testemunhas e ouvia os seus depoimentos, que ele estava a aderir à tese da defesa;
Eis senão quando...
Eis senão quando, vindo do fundo da sala e avançando a passos largos em direcção a secretária do juiz, o oficial de diligências interrompe abruptamente a inquirição da testemunha e anuncia, excitado, com voz cavernosa:
- Senhor Dr. juiz, desculpe interromper, mas está lá dentro uma testemunha a ofender V. Exa!
Perante o insólito da situação, há uma perplexidade geral. O interrogatório pára e o juiz, estupefacto, pergunta:
- O que é que o senhor está para aí a dizer?
A resposta veio de imediato, peremptória:
- É uma testemunha do réu que está lá dentro a ofender gravemente
V. Exa!
- O que é que o Sr. quer dizer com isso - pergunta de novo e já agastado o juiz.
A nova resposta agravou a situação:
- Não posso dizer mas é uma ofensa muito grave a V. Exa.
Perdendo de vez a paciência o juiz increpa o funcionário:
- Explique-se lá, homem, o que é que aconteceu?
Perante o tom peremptório do juiz o oficial de diligências, não podendo arrastar mais a situação, explicou-se finalmente:
- Então se o Sr. Dr. juiz manda eu digo: é a testemunha Nascimento que anda lá dentro a dizer em voz alta que o Sr. Dr. juiz antes de julgar as bananas, devia levar uma banana pelo cu acima !!! ...
Foi como se um raio tivesse caído na sala de audiências. Risinhos e murmúrios preencheram os momentos de grande tensão e confusão que se seguiram a esta insólita declaração. Até que o juiz retomou o controle da situação: “Está suspensa a audiência por duas horas” – decretou – “e os autos vão de imediato ao Ministério Público para dedução da acusação pelo crime de injúria a magistrado contra a testemunha Nascimento, seguindo-se o seu julgamento. Só após prosseguirá o presente julgamento. Nomeio o Sr. Dr. António Maria Pereira defensor oficioso do réu Nascimento.”
Senti que o universo desabava sobre mim. A extrema ansiedade de que estava possuído naquela minha fatídica estreia duplicava perante o catastrófico desenvolvimento dos acontecimentos. Que ia eu fazer em tão angustiante emergência?


Mas antes de relatar o que seguiu, façamos um passo atrás para explicar o que tinha sucedido na sala onde as testemunhas – incluindo o Sr. Nascimento – aguardavam ser chamadas a depor.
Era um compartimento escuro, com banquetas em madeira e ali as testemunhas tinham aguardado durante toda a manhã para serem chamadas a depor, o que as tinha deixado mal dispostas. O Sr. Nascimento, ajudante de notário, que era um homem extrovertido e apopléctico, de faces coradas, tinha acabado de almoçar. Como era seu hábito, comera bem e bebera melhor. Já tinha perdido a manhã inteira na sala das testemunhas e tudo indicava que teria de aguardar mais algum tempo até ser chamado a depor. Para quebrar a incómoda monotonia da situação, o Sr. Nascimento começou, em voz alta, a dizer graçolas sobre bananas – tema central do julgamento. As outras testemunhas riam e contavam, também elas, outras histórias de bananas.
Eis senão quando, em plena euforia bananal, intervêm o oficial de diligências com um ríspido: “pouco barulho, estão a prejudicar os trabalhos do tribunal”.
Vai daí o Sr. Nascimento que, como ajudante de notário que era, não estava habituado a esse tratamento, antes pelo contrário, insurge-se e exclama: “O Sr. não manda em mim, eu falo quando quero !”
“Não fala não senhor” responde em tom desabrido o oficial de diligências, “olhe, que eu vou fazer queixa do Sr. ao juiz...”
Cada vez mais furioso e ainda sob os efeitos do vinho copiosamente ingerido ao almoço, o Nascimento sobe a parada : “Vá lá fazer queixa à vontade e diga a seu juiz que para perceber de bananas devia era meter uma pelo cu acima !!!” .



Explicado o incidente e fazendo das tripas coração tentei defender o que era quase indefensável. Comecei por falar com o Sr. Nascimento convencendo-o a entrar na ordem pedindo desculpa ao juiz e explicando que se tinha excedido por que tinha bebido um pouco de mais ao almoço...
Reaberta a audiência, procedeu-se ao primeiro julgamento, do Sr. Nascimento, arguido do crime de injúria a magistrado. Graças à atenuante da embriaguez foi condenado a 4 meses de prisão com pena suspensa. Seguiu-se a continuação do julgamento do meu cliente das bananas que foi absolvido por não se ter provado o crime de especulação.
Depois desta angustiante estreia profissional contraí uma tal alergia às bananas que a sua simples visão me provocava enjoos. A alergia durou algum tempo mas hoje já me considero curado...


António Maria Pereira
16 de Dezembro de 2003
in Helder Fráguas, Se a Justiça Falasse…, Lisboa, 2004