domingo

DILEMA




Eu só o conhecia de alguns encontros esporádicos. Mas, daquela vez, o Ricardo quis marcar um encontro comigo para conversar sobre algo que o preocupava. A aproximar-se dos 60 anos, andava apoquentado. Descreveu-me a forma como o Pai morrera, uns meses antes.
- O meu filho está com 20 anos. É excelente aluno na Universidade. Mas raramente conduz. Naquele dia, ia com o meu Pai na auto-estrada, a caminho do Algarve.
Fora em Agosto. Avô e neto seguiam "para baixo", como muitos portugueses fazem durante as férias. Ao volante, ia o jovem universitário.
O desgostoso senhor continuou o relato:
- O meu Pai ia sentado ao lado do neto. Ia muito desassossegado. Começou a queixar-se de que o ar condicionado lhe estava a fazer mal. O meu filho desligou-o. Pouco depois, disse que estava muito calor. O neto abriu as janelas. Logo a seguir, reclamou do vento e o meu filho fechou as janelas. Não tardou até que pedisse para ligar o ar condicionado, mas com uma temperatura que não fosse muito baixa.
Ignoro se, realmente, o neto ficou menos atento devido àquelas exigências. A verdade é que distraiu-se. Embateu contra o rail de proteção do lado direito.
Não ia com grande velocidade. Mas foi o suficiente para um acidente que causou a morte ao idoso. O condutor ficou ileso.




ARGUIDO

O senhor explicou-me o sofrimento que tivera ao perder o Pai, daquela forma. É certo que a vítima já tinha completado oitenta anos e tivera uma vida bem preenchida. Mas é sempre muito doloroso suportar aquele drama.
Agora, o que mais o incomodava é que os problemas não tinham ficado por ali.
O filho estava constituído arguido pelo Ministério Público, que investigava a possibilidade de o acusar pelo crime de homicídio por negligência. Isto é, seria julgado por ter morto o próprio avô, devido a não respeitar as regras de trânsito, por falta de cuidado.
Sem antecedentes criminais, com uma vida bem organizada e provavelmente beneficiando do regime especial para jovens adultos, era quase garantido que não iria preso. Se fosse condenado, pagaria uma multa ou ficaria sujeito a uma pena suspensa.
Eu compreendia a ansiedade do Ricardo. Mas não se antevia um cenário muito negro.





MILHARES DE EUROS

Por outro lado, numa perspetiva estritamente material, tínhamos de levar em consideração um aspeto importante.
O idoso era viúvo. A mulher falecera uns tempos antes daquele acidente. O herdeiro universal era o filho único. Precisamente o Ricardo, que ali estava à minha frente.
Portanto, a demonstrar-se que o acidente ocorrera por responsabilidade do condutor, a companhia de seguros teria de indemnizar o Ricardo. É um montante que não se pode calcular de forma rigorosa. Mas estaria em causa algo entre os 80 e os 200 mil euros.
Tudo o que havia a fazer era o Ricardo deduzir um pedido no processo criminal, dirigido contra a seguradora que emitira a apólice relativa àquele carro.
No meio daquela tragédia, importava salvaguardar todas as faculdades que cada um tinha ao seu alcance. Obviamente, o filho do Ricardo desejaria ser ilibado e não se submeter ao julgamento. Mas a verdade é que se perdera uma vida e o filho do falecido também tinha os seus direitos.
Contudo, o Ricardo elucidou-me que, naquela situação, o dinheiro não contava. O que ele queria mesmo é que o filho deixasse de ser arguido e que o processo fosse encerrado, sem chegar a julgamento.
E assim foi.
Para gáudio de pai e filho, o procurador mandou arquivar os autos. O Ricardo nem queria ouvir falar da hipotética indemnização.