quinta-feira

FAZER-SE DE MORTO



É fascinante a reportagem de Sandra Felgueiras sobre o desaparecimento de João Álvaro Dias, advogado prestes a cumprir pena de prisão por burla.
Será que ele faleceu mesmo, junto a casa, atropelado pelo seu próprio veículo? Ou apenas simulou a sua morte?
O funeral consistiu na incineração do cadáver e agora não há vestígios biológicos que permitam verificar se o corpo era do jurista. Existe uma amostra de sangue do causídico, mas nada garante que tenha sido efetivamente retirada ao defunto.
Uma diligência simples poderá esclarecer o assunto.


CARREIRAS

Na Polícia Judiciária há duas carreiras profissionais, que são bem retratadas no cinema.
A primeira é a de investigação. O seu início dá-se nas funções de inspetor estagiário e o topo corresponde ao cargo de coordenador superior.
São os polícias que dispõem de uma arma de fogo, perseguem criminosos, prendem suspeitos, permanecem horas a vigiar pessoas, interrogam arguidos e ouvem testemunhas.
O outro ofício é o de especialista. Na base da pirâmide encontram-se os auxiliares e no topo os especialistas superiores.
Tratam-se dos profissionais que comparecem no local do crime e envergam fatos de macaco brancos com capuz e descartáveis, enquanto obtêm pontas de cigarro, colhem saliva na língua das pessoas de interesse, analisam manuscritos, observam impressões digitais, examinam munições, estudam peças de vestuário e realizam perícias em telemóveis.



IMAGEM

A fronteira entre as duas funções está bem delimitada e deve sempre ser respeitada.
Mesmo a captação de imagens fotográficas, que qualquer pessoa sem habilitações especiais consegue fazer com mais ou menos talento, deve ser deixada para os peritos. Na fotografia, uma grande espingarda passa a ter dez centímetros e o gatilho parece maior do que a coronha consoante o ângulo em que se situa a máquina. É essencial que o trabalho seja efetuado por um entendido, que coloca uma régua graduada junto ao objeto antes de fixar definitivamente o retrato segundo as normas que atenuam as distorções.


CINTO MUITO

Ora voltando ao caso do sujeito que escapou à justiça pela lei da morte, a identificação de pessoas obedece precisamente a esses critérios científicos que determinam a utilização de técnicas especiais por quem sabe do assunto.
Como já aqui expliquei, a tarefa depende da análise dos dados biométricos e foi assim mesmo que eu consegui a absolvição de um cliente que tinha sido falsamente identificado em imagens de videovigilância obtidas num assalto bancário.
É possível que dois agentes conhecessem muito bem João Álvaro Dias há imenso tempo e se recordassem perfeitamente das suas caraterísticas físicas.
Contudo nem a Mãe dele seria capaz de garantir que determinado defunto vítima de acidente de viação seria realmente o causídico. Provavelmente, reconheceria o cadáver por um cinto das calças, igual a tantos outros.



FEZADA

Sem recurso à ciência e à técnica, tudo o que há são meros palpites, impressões, suposições, alvitres próprios de quem tem uma fezada inabalável de que a realidade corresponde ao pressentimento que se foi adquirindo. Dois inspetores a olhar para um corpo fotografado apenas conseguem coçar a cabeça e concluir não haver dúvida ser aquele o homem com quem se cruzaram muitas vezes e cuja estatura bem lembram, salientando as semelhanças irrefutáveis e destacando as inegáveis parecenças com o indivíduo que deveria ir para a cadeia.
O que há a fazer é obter fotografias que indubitavelmente retratam o antigo docente universitário entre amigos, colegas ou familiares e submetê-las ao confronto com as poucas imagens disponíveis do cadáver que foi sujeito a autópsia sem que houvesse filmagem do exame.
Trata-se da perícia de reconhecimento biométrico que é levada a cabo no Laboratório de Polícia Científica, através do serviço de especialidade forense de imagem digital.