domingo

A CONTA DA FARMÁCIA





Há pessoas com uma desfaçatez…
Eu compreendo que não deve ser agradável levar um tiro nos testículos.
A dor com uma simples pancada é suficientemente forte para que se possa imaginar o sofrimento que aquele homem teve.
É fácil de aceitar que ele passou por um mau bocado. Ainda que tenha conseguido ir a conduzir o seu próprio automóvel até ao hospital. Calculo a atrapalhação. Deve ter sido dos piores momentos, em termos de dor física.
Dois anos depois, ele juntou ao processo uma série de recibos da farmácia. Aparentemente, seria o normal. Pouca gente se dá ao trabalho de se pôr a ver que medicamentos terão sido comprados.
Ele pedia uma bela indemnização ao arguido.
Alegava que tinha terminado a sua vida sexual.
Isso já era mais difícil de aceitar. O Instituto de Medicina Legal garantia que o ferimento não era apto a causar uma incapacidade funcional.
Mas esta matéria tem tanto de físico como de psicológico.
Realmente, levar com uma bala naquele sítio deve ser traumatizante. Pode causar alguns problemas psicológicos.
O homem disse-me peremptoriamente:
- Desde a altura, fiquei sem reacção.
E apontava para as partes genitais.
Comecei a pensar que seria, de facto, complicado decidir se daria aquilo como provado ou não.
A tarefa foi-me facilitada pelo advogado de defesa.
O arguido andava muito solitário, lá na prisão.
Pôs-se a ler atentamente todas as fotocópias do processo.
Os tais recibos da farmácia não lhe passaram ao lado.
Todos eles em nome da vítima, já com 62 anos de idade.
O curioso era verificar a discriminação dos produtos adquiridos.
Entre eles, contavam-se pastilhas Rennie, compradas muito depois do disparo. Efectivamente, não poderiam ter nada que ver com a actuação do arguido. Havia ainda uma quantidade de medicamentos para o reumatismo. Ele não devia ser daqueles que recorria às pomadas próprias para cavalos, que dizem ser muito eficazes também para humanos.
Agora o mais curioso era verificar a quantidade de vezes que ele tinha comprado preservativos. Será que era devido ao facto de não ter “reacção”? Andava sempre a tentar em vão?
Fiquei convencido do contrário.
Apesar da idade e não obstante o ferimento causado por aquele disparo num sítio tão sensível, ele deve ter continuado a dar utilidade ao número de preservativos que adquiria.
De modo, que, de indemnização, dei menos do que ele pedia.
Do ponto de vista criminal, não pude deixar de condenar o arguido.
O acusado alegava legítima defesa.
Mas sem grande fundamento.
Eles eram vizinhos. Ambos já se encontravam reformados. Até tinham tido alguma amizade.
Em tempos, o agressor tinha ajudado o outro numa obra.
As coisas azedaram uma vez que a vítima se servira de lenha cortada pelo vizinho.
Estes pedaços de madeira estavam num terreno desocupado. Mas quem os tinha preparado era o dono da pistola que veio a ser a arma do crime.
Como o local de armazenamento não era de nenhum deles, a vítima resolveu servir-se de uma boa quantidade. Sobretudo porque ouvira dizer que o outro lhe tirara, em tempos, areia de construção civil.
O homem que tinha gasto tanto tempo a cortar lenha foi pedir satisfações.
A resposta foi demolidora:
- Aquilo era de madeira apanhada aí no pinhal. As árvores não eram suas. O terreno onde a lenha estava guardada também não é seu. Além disso, já está tudo queimado.
Foi o suficiente para gerar uma zaragata.
O que tinha retirado a madeira agarrou-se ao pau, que estava no seu quintal. Tinha um ar ameaçador.
O outro retirou-se.
Regressou com uma pistola. Tinha estado em África, a combater. Sabia manejá-la.
Faltava um elemento essencial para se poder dizer que havia legítima defesa: a actualidade da agressão. Uma pessoa não pode atingir outro se a ameaça de agressão já terminou.