sábado

O CEGO PISTOLEIRO




O crime de ameaça tem uma característica curiosa.
O infractor diz que vai cometer um crime. Fá-lo de tal maneira que pode causar medo a outra pessoa.
Há alguns casos frequentes que não deixam dúvidas.
“Eu mato-te”, “mando-te para o hospital” ou “parto-te todo”: nestas situações, não há razão para hesitar. Está-se perante uma ameaça, desde que proferida em tom sério.
Há, todavia, expressões menos claras.
A mais vulgar é “faço-te a folha”.
É algo que pode abranger tudo, dependendo da interpretação que se der.
Pode ser desde fazer a pessoa perder o emprego até, realmente, matá-la.
Não interessa a forma como o visado encarou aquela ameaça.
Ele até pode ter ficado apavorado.
Mas a verdade é que não é uma frase susceptível de, objectivamente, atemorizar, fazendo prever a prática de um crime importante.
Para que se verifique o crime de ameaça, é necessário que se diga que se vai cometer um verdadeiro crime.
Não basta afirmar que se vai praticar uma ilegalidade qualquer.
“Vou estar sempre a tocar à campainha da sua casa”, “despeço o seu filho, mesmo sem ele ter culpa nenhuma” ou “se continuas assim, não te pago o que te devo”: nada disto são crimes de ameaça.
Aliás, de um modo geral, mesmo que se ameace praticar um crime contra o património, não há lugar a punição. Salvo se o indivíduo disser que vai atentar contra algo de valor.
Por exemplo, não é sancionado aquele que afirmar: “risco-te o carro” ou “parto-lhe um vidro”.
Tive um caso curioso envolvendo ameaças e cegueiras.
Há uns bons anos, foi noticiado que um invisual passava a vida a receber multas, como condutor de um veículo.
Ele já tinha informado que nunca tinha estado ao volante de um automóvel. Como era óbvio.
Mas não deixava de receber os autos das infracções.
Pois eu tive uma situação inversa.
Um homem tinha-se reformado antes de completar os cinquenta anos de idade.
Levava uma vida solitária.
Decidiu arranjar um passatempo singular.
No início do mês, comprava um passe social.
Disfarçava-se de invisual. Punha uns óculos escuros e usava uma bengala.
Curiosamente, ia apanhar o autocarro para o Arco do… Cego, em Lisboa.
Seguia sempre na mesma carreira, com destino a casa.
Era cego, era cego… mas sentava-se sempre ao lado de senhoras!
Como não via, ia às apalpadelas. Lá tocava nos seios das senhoras ou nas pernas. De vez em quando, levava uns estalos, mas ele não se importava.
Começou a ser conhecido.
Os motoristas e as passageiras habituais já tinham percebido que ele era tudo, menos invisual.
Todavia, a generalidade dos motoristas retraía-se e não intervinha. Ele já se mostrara pouco amistoso.
No entanto um motorista mais jovem cansou-se daquilo.
Certa vez, negou-lhe a entrada no autocarro. Fundava-se no regulamento dos transportes e no facto de ele incomodar outros passageiros.
O homem não achou graça àquilo e disse-lhe:
- Se eu não fosse cego, dava-te um tiro!
O motorista apresentou queixa por ameaça.
Agora imagine o leitor as dificuldades que eu tive para decidir.
Bom, se fosse um invisual a afirmar aquilo, não havia grandes dúvidas. É uma ameaça hipotética, sujeita a uma condição impossível.
É mais ou menos o mesmo do que dizer: “quando as galinhas tiverem dentes, eu dou cabo de ti”.
Não é para levar a sério.
O diabo é que ele não era invisual.
Portanto, como ele não era cego, será que já queria dizer que ia dar o tiro?
As coisas têm de ser interpretadas no seu contexto.
Era um homem a viver num mundo fantasioso. Fingia ser cego, dizia dar tiros se não fosse invisual. Assim, aquela ameaça não era apta a causar temor.
Tive de o absolver.