sábado

VERDADEIRA OBRA DE ARTE




Tatuagens complicadas do meu peito:
Troféus, emblemas, dois leões alados…
Mais, entre corações engrinaldados,
Um enorme, soberbo, amor perfeito…
Assim se referia o poeta Camilo Pessanha aos desenhos indeléveis na epiderme.
Para além de escritor, ele era advogado. Desempenhou ainda a função de juiz substituto.
Naquele tempo, as tatuagens faziam parte do mundo prisional.
Nas cadeias de hoje, continua a ser vulgar os reclusos tatuarem-se. Em todo o mundo, diga-se de passagem.
Este processo apresenta actualmente um perigo, que se traduz na possível propagação de doenças transmissíveis.
As máquinas de tatuagem que oferecem segurança, do ponto de vista sanitário, nunca poderiam encontrar-se na mão de prisioneiros. Facilmente, se transformariam numa arma.
Depois, certos símbolos podem ser provocadores. Por exemplo, uma cruz suástica ou qualquer outro emblema que signifique supremacia branca pode ser aplicado como tatuagem. Ora um detido que se exiba assim facilmente gera conflitos.
De modo que as tatuagens acabam por ser realizadas através de meios artesanais.
Já passou de moda o recurso a uma simples esferográfica. Era um processo doloroso e que conduzia a resultados pouco satisfatórios. A imagem era constituída por pontos relativamente grandes e normalmente apresentava apenas uma cor. Quase sempre o azul. Já nem um preso queria uma tatuagem dessas.
O meio alternativo mais frequente consiste na utilização de uma corda de guitarra, cuja espessura é suficientemente fina. É ligada a um motor eléctrico a pilhas. Este extrai-se de um walkman ou de um carrinho em miniatura.
As tatuagens satisfazem parcialmente algumas necessidades artísticas, eróticas e de poder.
A representação de figuras femininas preenche, de certa maneira, um importante vazio. Já o rosto de uma mulher chorando significa, geralmente, que a namorada aguarda a libertação.
Por vezes, vemos o típico smile: um círculo com dois olhos e uma boca sorridente. Mas, ao lado ou em baixo, surge outra circunferência, mas com os cantos da boca virados para baixo. É a alegria e a tristeza.
Em resumo, exprime a velha máxima de que o crime não compensa. Como dizem os anglo saxónicos, play now, pay later.
O mostrador de um relógio desprovido de ponteiros denota o longo tempo passado lentamente na prisão.
A afirmação de poder manifesta-se de diversas formas.
Possuir um corpo repleto de tatuagens denota, obviamente, que se tem à vontade económico.
Mesmo que o trabalho tenha sido pago a troco de maços de tabaco, só quem possa financiar aquela obra usufrui de semelhante luxo.
Por outro lado, o tatuador goza de prestígio no meio prisional.
Nas cadeias, este universo das tatuagens é altamente desaconselhável.
Bem mais interessantes são os trabalhos que estiveram expostos no Tribunal das Caldas da Rainha.
São obras artísticas realizadas por presos das Caldas, de Alcoentre, de Vale de Judeus e de Leiria. Situam-se no domínio da pintura, olaria, escultura, tapeçaria e bordado.
A mostra intitulou-se “Arte como forma de inserção”.
A produção tinha a evidente vantagem de não ser clandestina. De resto, o fornecimento de alguns materiais era até da responsabilidade dos estabelecimentos prisionais.
Naturalmente, os reclusos autores das obras podiam comercializá-las.
Foi uma excelente iniciativa da minha Colega daquele tribunal.
Merece ser implementada noutros locais.
Dizia Dostoyevsky que o grau de civilização de uma sociedade podia imediatamente ser avaliado entrando nas suas cadeias.
Pelo menos no domínio da produção artística, estamos no bom caminho.