sábado
NA PRISÃO SEM SABER DE NADA
Anteriormente, aludi à exposição que teve lugar no tribunal das Caldas da Rainha. Em exibição encontravam-se trabalhos artísticos realizados por presos.
A divulgação desse tipo de obras é assaz interessante.
Obviamente, é fundamental que, de todos, seja conhecida a sua proveniência.
No entanto, é algo de surrealista o que se passou com o vice-presidente Henry Wallace, dos Estados Unidos.
Estava-se em Maio de 1944.
A América e a União Soviética encontravam-se unidas no combate à Alemanha nazi. As relações eram amistosas.
De resto, o próprio Wallace disse numa ocasião: “tanto os russos como os americanos procuram, de modos diferentes, uma forma de vida que permita ao homem comum obter o máximo benefício da tecnologia moderna. Não há nada de irreconciliável nos nossos objectivos e propósitos”.
Só realmente uma pessoa com semelhante espírito de abertura poderia visitar a prisão de Kolyma, na Sibéria, e não se aperceber que se encontrava numa cadeia.
É certo que os estabelecimentos prisionais da União Soviética não correspondiam exactamente aos padrões dos cárceres ocidentais. Tratavam-se mais de campos de trabalho, em espaços amplos.
As fugas eram evitadas sobretudo mediante recurso à vigilância por parte de guardas armados. Era inviável construir muros em áreas tão vastas.
Daí que, com facilidade, se tenha preparado uma visita que foi uma farsa.
Os prisioneiros tinham sido advertidos que nunca poderiam dar a entender que se encontravam detidos. Seriam sempre apresentados como trabalhadores empenhados no progresso do país.
O anfitrião foi Ivan Nikishov. Ele era um oficial de topo do Comissariado Popular da Administração Interna (NKVD), antecessor da polícia secreta, a KGB.
As boas vindas estiveram a cargo de um conjunto de presos políticos, todos eles cantores e músicos profissionais, alguns dos quais das óperas de Moscovo e Leninegrado.
Ao vice-presidente americano foi explicado tratar-se de um grupo musical amador do Exército Vermelho.
Naturalmente, ele ficou impressionado com a qualidade daqueles amadores.
Seguiu-se, então, a visita a uma exposição de bordados.
Eram peças emolduradas, destinadas a serem penduradas na parede.
Tinham sido realizadas por detidos.
Mas, para Wallace, tratavam-se de obras realizadas por grupos de senhoras, que se reuniam para o efeito, durante o rigoroso Inverno.
O vice-presidente apreciou, em particular, um dos quadros, que tinha sido elaborado por uma reclusa, de nome Vera Ustieva.
Ivan Nikishov apercebeu-se do interesse do seu convidado.
Retirou a peça da parede e ofereceu-lha.
Junto de ambos, encontrava-se Gridasova, a mulher de Nikishov.
Ela não perdeu a oportunidade.
Com alguma reserva, comunicou que a peça era de sua autoria.
Mais tarde, quando o vice-presidente já havia regressado ao seu país, Gridasova recebeu uma carta.
A remetente era a esposa de Wallace. Agradecia a oferta e informava que o bordado se encontrava exposto na sua casa de Washington.
O episódio encontra-se relatado num livro magnífico, que mereceu o prémio Pulitzer 2004. Chama-se Gulag e é da autoria de Anne Applebaum, jornalista do Washington Post.
Em 1946, Henry Wallace publicou as suas memórias. Mencionou aquela oferta, ainda convencido de que a artista era a mulher do seu anfitrião.
Nessa altura, a verdadeira autora da peça, Vera Ustieva, já havia tomado conhecimento de que a mesma se encontrava nos Estados Unidos da América.
Sabia que fora entregue àquele alto dignitário. Ela própria escreveu também um livro em que refere o assunto. Mas estava longe de imaginar que Gridasova se intitulara criadora da obra.