quarta-feira

AGARRAR O MAL E EXPULSÁ-LO




Uma senhora de Vila Franca de Xira andava preocupada com a sua filha de cinco anos. Tratava-se de um evidente caso de hiperactividade.
Num daqueles programas televisivos matinais, ela tinha assistido a uma entrevista a um indivíduo com os paramentos eclesiásticos, de sotaina, roquete e sobrepeliz. Ele dá consultas em que pratica exorcismo, por forma a libertar os males que estão dentro das pessoas.
Mas neste caso da pequena de Vila Franca de Xira, ocorria algo curioso. O curandeiro esclareceu que o mal não estava dentro da menor, mas sim no interior da jovem mãe.
O caso tem contornos jurídicos interessantes. Não é assim tão linear como poderia parecer.
A situação foi relatada pelos jornais “Comércio do Porto” e “Tal & Qual.
Ora o tal curandeiro esclareceu que, na segunda consulta, não valia a pena a criança vir. Bastava comparecer a mãe para expurgar os espíritos que haviam penetrado no seu corpo.
O aturado tratamento implicou agarrar o mal, apalpando a mulher por todo o lado. Até houve necessidade de o terapeuta introduzir os seus dedos na vagina dela. Aquilo é uma coisa que anda pelo corpo todo…
O problema é que não ficou tudo solucionado.
Havia necessidade de mais uma sessão, noutro dia.
A senhora ainda passou um cheque ao cavalheiro e deixou-lhe uns bolinhos, em sinal de reconhecimento.
Na consulta seguinte, o exorcismo foi mais enérgico.
Já envolveu beijos na boca, palpação dos seios e nova pesquisa no órgão genital.
A senhora sentiu-se muito incomodada.
Mas ela só revelou tudo ao marido após verificar que, afinal, toda aquela grande actividade não tinha resolvido a hiperactividade da filha.
De qualquer modo, aquilo até não é assim tão raro.
Já houve duas outras senhoras que se queixaram de idêntico tratamento por parte deste mesmo exorcista.
Uma delas ainda apanhou umas bofetadas, antes de levar beijos na boca e ser apalpada.
Ora a tal jovem mãe apresentou queixa-crime contra o indivíduo.
Em matéria de crimes sexuais, há duas regras basilares.
A primeira é a da tipicidade e legalidade.
Só é realmente crime o que estiver expressamente previsto na lei.
Casos similares, afins ou idênticos não constituem infracção. É a proibição da analogia. Compreende-se que assim seja. A pessoa não pode ser mandada para a prisão por ter praticado um acto que não se encontra claramente mencionado na legislação penal.
A segunda norma fundamental respeita ao consentimento ou autorização. Em princípio, só há crime sexual se não houver anuência do visado.
São poucos os casos em que existe punição mesmo havendo o assentimento. Tal sucede sobretudo quando há menores envolvidos. A permissão não interessa.
Obviamente, o consentimento pode ser tácito ou presumido. Basta que se saiba que a pessoa permite.
Não se está a ver um médico ginecologista solicitar à paciente para assinar um documento no qual ela autoriza a observação clínica.
Ou, então, o marido a pedir constantemente licença à mulher.
Portanto, nesta situação do curandeiro, a primeira coisa a apurar é se houve ou não consentimento.
Será que o exorcista foi fazendo as coisas de forma a que se possa dizer que a senhora foi autorizando? Ou avançou contra a vontade dela?
Mesmo que tenha existido anuência, ainda se pode colocar a questão de saber se houve fraude sexual.
Esse é uma das poucas ocorrências em que o consentimento, concedido por um adulto, não conta. Precisamente porque a permissão é concedida com base num erro.
Ora a fraude sexual apenas se verifica em circunstâncias especialíssimas de erro sobre a identidade. Por exemplo, uma mulher está a dormir sossegadamente, aguardando que o marido chegue a casa. O cunhado aproxima-se dela. Aproveita-se do escuro do quarto e do facto de ela se encontrar em letargia. Deita-se a seu lado e faz-se passar pelo irmão.