quarta-feira
FECHOU A ESCOLA
Aqui há uns tempos, estacionei a minha viatura nas imediações da Embaixada da Bélgica. Era o dia nacional deste país.
Ainda faltava algum tempo para ter início o cocktail comemorativo, para o qual eu havia sido convidado.
Fui dando uma volta por aquelas simpáticas artérias da Lapa, até que passei por uma típica mercearia de bairro. Na montra, encontrava-se afixada uma folha de papel em formato A4, manuscrita, anunciando timidamente, algo que habitualmente surge em letras garrafais: “Liquidação total, por motivo de encerramento”.
A porta não estava aberta, mas era visível que, no interior, se encontravam clientes.
Algumas garrafas de vinho do Porto tinham despertado a minha atenção. Quando um freguês saía para a rua, eu aproveitei para penetrar no estabelecimento.
Pedi para ver as tais bebidas, cujo preço era ligeiramente inferior ao normalmente praticado.
Em jeito de meter conversa, indaguei junto do dono da mercearia:
- E sempre vai mesmo encerrar esta bonita mercearia?
Ele quis claramente demonstrar que não havia outra alternativa. As despesas eram mais elevadas do que as receitas. Os impostos eram tão elevados, que ele até já tinha declarado às Finanças que a sua actividade comercial havia cessado. Assim se explicava a porta não estar aberta.
Por isso, ele disse-me:
- Não vale a pena trabalhar só para pagar impostos. Já fechei a mercearia.
Eu não resisti a introduzir um elemento de desanuviamento:
- Mas se a mercearia está fechada, como é que eu entrei?
Felizmente, esqueci-me da minha qualidade de jurista. Limitei-me a adquirir umas quantas garrafas e não pensei mais no assunto.
Os especialistas em leis adoram debater estas matérias.
Estaria ou não o estabelecimento realmente encerrado? Quais as consequências de o indivíduo andar a comercializar produtos, mesmo depois de ter dado baixa da sua actividade?
Uma acesa discussão deste tipo teve lugar em Vila Franca de Xira.
Há uns trinta anos, um professor decidiu abrir uma escola de línguas, numa conhecida rua.
Celebrou um contrato de arrendamento com o dono de um apartamento, onde ficou instalado o estabelecimento de ensino.
Como habitualmente, indicou-se no documento a finalidade dada ao imóvel. Inseriu-se exactamente aquilo que se tinha em mente: o locado destinava-se a uma escola de línguas.
Passadas três décadas, tal originou a referida controvérsia.
Não haveria polémica caso se tivesse redigido que o apartamento tinham como objectivo leccionar aulas. Mas mencionava-se expressamente que iria lá ser instalada uma escola.
Ora realmente, durante muitos anos, funcionou a escola de línguas, com muitos alunos e vários professores, com a porta franqueada para permitir o acesso dos estudantes.
Mais recentemente, a actividade decrescera e apenas havia meia dúzia de alunos, que tinham aulas dadas por duas professoras, uma das quais familiar do inquilino.
A renda era baixa e o senhorio queria obter o despejo.
Meteu um processo em tribunal e iniciou-se uma longa batalha judicial.
O dono do imóvel invocava ter havido encerramento do estabelecimento. O inquilino alegava que tal não era assim, pois ainda havia estudantes.
Nessa medida, o tribunal deu razão ao senhorio. Houve total encerramento da escola de línguas. A porta deixou de estar aberta e o que se verificava era uma actividade diferente: aulas esporádicas.
Portanto, em princípio haveria motivo para despejo.
Sucede que estas questões legais são sempre intrincadas.
O senhorio sabia do encerramento da escola, desde que o mesmo ocorrera.
Ainda deixou passar muito tempo até que processou judicialmente o inquilino. Como decorrera mais de um ano, já tinha cessado o seu direito de requerer o despejo.
Por isso, o dono do imóvel perdeu a acção judicial.