segunda-feira

DORMINDO NO CEMITÉRIO



Corria o ano de 1940.
Na aldeia de Nogueira, no concelho de Santa Maria da Feira, circulava um carro preto. Para todos, era evidente que os dois ocupantes eram elementos da polícia política, a PVDE, antecessora da PIDE.
Buscavam Carlos Ferreira Soares, jovem médico, militante do Partido Comunista, cuja captura há muito era pretendida.
O automóvel imobilizou-se junto à barbearia.
Um dos polícias abriu a porta e, sem cumprimentar, questionou o barbeiro quanto ao doutor.
A situação era delicada. Na cadeira, ali estava o foragido, com o tronco coberto por uma capa e a face ensaboada, pronta a ser escanhoada.
O baeta teve presença de espírito. Era arriscado dizer que não avistara o médico. Os agentes talvez estivessem informados de que ele fora visto a entrar no estabelecimento.
Então, a resposta dada pelo barbeiro foi inteligente:
- Saiu daqui mesmo há pouco.
E indicou onde se situava a casa do clínico, por todos conhecida.
Sem agradecimento nem despedida, os polícias arrancaram.
Assim escapou o Dr. Ferreira Soares, por uma unha negra.



UM JUIZ SOFRIDO
O pai de Carlos Ferreira Soares era um prestigiado Juiz, mas homem sofrido.
Um dos seus filhos cometera suicídio.
Agora, o descendente que terminara estudos de Medicina via-se naquela situação de clandestino. Durante o dia, o médico passeava-se pela aldeia. Atendia doentes, a quem nada cobrava. Os locais da consulta iam variando, para evitar rotinas que deixassem pistas quanto ao seu paradeiro.
A dramática história deste opositor ao regime consta de um brilhante livro escrito por Armando de Sousa e Silva: “Vítimas de Salazar – Carlos Ferreira Soares”.


A JAPONEIRA
O grande segredo do comunista era o seguinte.
À noite, Ferreira Soares nunca ia para casa. Metia-se no cemitério. Recostava-se junto a umas camélias e ali dormia, com pouco conforto. O único descanso era a certeza de que ninguém se lembraria de procurá-lo naquele lugar tão tétrico. No norte do País, o arbusto da camélia é conhecido por japoneira, atendendo a que se trata de planta proveniente do país do sol nascente.
Foi, pois, uma japoneira que manteve a salvo, durante anos, o generoso clínico, também conhecido pelos seus trabalhos etnográficos.
Actualmente, na sua localidade natal, existe um centro comercial denominado “A Japoneira”, em homenagem ao ilustre homem da terra.
O seu fim foi trágico.
Dois anos após aquele extraordinário episódio ocorrido na barbearia, foi montada uma armadilha. Uma falsa doente manifestou vontade de ser observada pelo Dr. Carlos Ferreira Soares. A bondade do terapeuta traiu-o. Embora não conhecesse a criatura, acedeu a recebê-la. Após a consulta, quatro polícias entraram pela sala dentro. Por razões não completamente esclarecidas, um deles disparou sobre o homem que iria ser preso. É provável que o médico fosse portador de alguma arma de fogo e tivesse tentado fazer uso dela.
Após Carlos ser atingido, sua irmã aproximou-se dele, tendo ouvido, da boca do ferido, um auto-diagnóstico certeiro:
- Vou morrer.
Muito combalido, foi levado pelos agentes. Deixaram-no no hospital, já sem vida. Pelos vistos, antes de o conduzirem à unidade clínica, quiseram certificar-se de que o homem capturado morrera mesmo. Ele apresentava vestígios de 14 balas que lhe perfuraram o corpo!


“HOMEM PRESTÁVEL”
A morte de Carlos, em 12 de Setembro de 1942, gerou muita comoção.
Marcello Caetano - promissor político da situação - nunca ouvira falar daquele médico comunista. Após a bárbara intervenção da PVDE, Caetano resolveu escrever ao Presidente do Conselho, indagando se tinha conhecimento do caso.
A missiva de resposta é muito curiosa. Quanto às circunstâncias da morte, Salazar não hesita em utilizar o vocábulo “assassinado”. Diz que “o assassinado era comunista conhecido”. E acrescenta o reconhecimento de uma realidade concernente ao falecido: “homem prestável, tinha, de facto, entre o povo, grandes dedicações”.
O polícia que comprovadamente disparou primeiro chamava-se António Roquete. Julgado em Tribunal Militar Especial, foi absolvido, tendo-se considerado que agira em legítima defesa. Para não suscitar mais alvoroço, destacaram-no para Moçambique, por forma a mantê-lo longe da metrópole, onde protestos mais ou menos velados se faziam sentir.