sexta-feira

SARAMAGO E O BIÓLOGO MARINHO

Logo no primeiro ano, os estudantes de Direito aprendem que há vários tipos de deveres ou obrigações.
Um vizinho cruza-se com outro habitante no elevador do prédio. Cumprimenta-o com um cordial “bom dia!”. Não ouve qualquer resposta. O morador mais introvertido não pode ser multado, por falta de educação.
Um andaime é colocado num edifício, pronto a ser pintado de fresco. Os operários não adoptam quaisquer cautelas com as viaturas estacionadas. O dono de um dos carros retira-o, evitando que o mesmo fique danificado, poupando-se a posteriores aborrecimentos. Apercebe-se de que o veículo pertencente ao proprietário de uma loja ali perto irá certamente ficar todo salpicado. Mas não se dá ao trabalho de prevenir o potencial lesado. Não vai preso por causa dessa omissão.
Estão em causa normas de cortesia e de moral. Impõem encargos de gentileza ou de ética.
Todavia, não são obrigações jurídicas ou deveres legais. Esses encontram-se expressamente previstos em leis. Quem as desrespeitar, sofre uma sanção, um castigo ou uma punição.
Os alunos ficam a saber uma coisa. Nos anos seguintes, apenas irão estudar o que a lei estabelece. A educação e a moral são diferentes do Direito.

















A COMPRA DO BARCO

José Saramago criou o nome Blimunda, para denominar uma personagem da obra “Memorial do Convento”.
É melodioso e mereceu grande admiração por parte de um biólogo marinho.
O cientista interessava-se pelos golfinhos do Sado. Decidiu comprar uma embarcação destinada exclusivamente ao estudo do comportamento destes mamíferos.
Quis baptizar o barco com aquele nome único. Por uma questão de delicadeza, escreveu uma carta ao autor do livro, pedindo-lhe autorização para tal. Obviamente, não estava adstrito a solicitar essa permissão. Mas quis fazê-lo, certamente não só por ser polido, mas igualmente porque era uma atitude moralmente adequada. Do escritor, obteve a respectiva anuência.
Mais tarde, Saramago chegou a viajar na Blimunda, admirando os golfinhos que se passeavam por ali.




A COMPRA DA CASA


Em 2006, o Prémio Nobel comunicou ao seu editor, Zeferino Coelho, que teria interesse em comprar uma casa na zona do Arco do Cego, em Lisboa. Com efeito, o escritor já possuía um apartamento na Rua Afonso Lopes Vieira. Interessava-lhe uma outra habitação, na mesma área. Na eventualidade de Zeferino saber de alguma oportunidade, Saramago viria à capital portuguesa e fecharia o negócio caso correspondesse ao que pretendia.
Sucede que o editor descobriu mesmo uma casa que deveria agradar a Saramago. Provavelmente, necessitaria de um olhar atento do escritor, pois havia pormenores que exigiriam algumas obras, com certeza. Por exemplo, o tecto da cozinha encontrava-se pintado de preto.
O diabo é que o escritor encontrava-se na Feira do Livro de Barcelona. Não podia deixar o evento, meter-se num avião e vir conhecer o imóvel.
Pensando que a casa se destinava ao próprio Zeferino Coelho, o proprietário do andar comunicou-lhe que surgira um outro interessado. Este iria comprá-lo pelas três da tarde daquele dia, a não ser que o primeiro fechasse o negócio antes dessa hora.
Também aqui, denota-se um cuidado ético e de civismo. O sujeito podia, pura e simplesmente, vender a propriedade ao novo interessado e nada dizer ao indivíduo que inicialmente visitara a fracção autónoma.
Perante esta situação, o editor telefonou a José Saramago.
Muito hesitante, o Prémio Nobel disse-lhe para proceder à aquisição. Iria comprar uma casa, sem a ter visto.
Fechado o negócio, o responsável pela Editorial Caminho abriu o jogo. Contou ao vendedor que a casa se destinava ao autor de “O Ano da Morte de Ricardo Reis”.
Ao ouvir isto, o proprietário daquele andar comoveu-se verdadeiramente e as lágrimas vieram-lhe aos olhos. Este homem era precisamente o tal biólogo marinho, dono da Blimunda, o barco que acompanhava os golfinhos no Sado.
Um verdadeiro gentleman. Que teve o cuidado de escrever a Saramago, antes de registar a sua embarcação na capitania. E que, muitos anos decorridos, mostrou ser pessoa de palavra. Reservou o seu apartamento lisboeta para o primeiro interessado, embora tivesse aparecido depois um comprador disposto a celebrar o contrato.
São pormenores constantes de uma obra da autoria de João Céu e Silva: “Uma Longa Viagem com José Saramago”.