quarta-feira

CILINDRADO NO TRIBUNAL


Nem todos os julgamentos criminais são altamente complexos. Não envolvem sempre crimes hediondos ou delinquentes profissionais. O quotidiano dos tribunais é também feito de casos simples, pouco graves, ainda que esteja em causa um processo criminal.
Quando eu me encontrava colocado em Sesimbra como juiz, deparei-me com uma situação comezinha, mas invulgar.
A freguesia da Quinta do Conde assumia algumas peculiaridades. A maior parte das casas tinha sido edificada clandestinamente, num meio florestal, sem arruamentos, esgotos, fornecimento de água potável ou serviço de electricidade. Com o esforço dos moradores e da autarquia, as infra-estruturas foram sendo criadas, desenhando-se um tecido urbano.
Para o final, ficou o asfaltamento das artérias. Durante muito tempo, a maior parte das vias permaneceu em terra ou macadame.
Quando as ruas começaram a ser alcatroadas, impunha-se o seu encerramento ao trânsito. Os arruamentos eram invadidos por máquinas, operários e sinalização, por forma a levar a cabo os trabalhos de pavimentação.
Obviamente, tal implicava incómodos para os moradores. Tinham de arrumar os seus carros longe de casa. De modo que o presidente da junta de freguesia pediu alguma tolerância ao empreiteiro. Solicitou que, ao final do dia, fosse permitido aos residentes circular com os automóveis, apenas com a finalidade de os estacionar junto à habitação. Assim aconteceu.

 

A COLISÃO


Em determinado dia, um dos moradores encontrava-se de folga. Deixou-se dormir até um pouco mais tarde. O seu carro permaneceu estacionado, enquanto os trabalhadores começavam a obra.
A dada altura, ainda pela manhã, ocorreu um acidente com o manobrador de um cilindro compactador, daqueles que possuem duas rodas na traseira e um rolo à frente, de modo a calcar o asfalto, alisando-o. Pois o condutor foi embater com o seu veículo contra o tal automóvel.
Logo um dos curiosos que assistia à obra correu a tocar à campainha do proprietário do carro. Alertada, a Guarda Nacional Republicana compareceu no local.
O manobrador do cilindro não era titular de nenhuma carta de condução. Legalmente, não podia conduzir na via pública.
Verificou-se ainda algo de curioso. Embora ainda fosse de manhã, ele acusou uma elevada taxa de alcoolemia, quando foi submetido ao teste de pesquisa através do ar expirado. Encontrava-se ébrio.
No próprio dia, o arguido respondeu perante mim, em julgamento sumário. O Procurador acusava-o de conduzir sem carta e de guiar em estado de embriaguez.
Ora colocava-se uma questão de ordem legal. Ambos os crimes pressupõem que a ocorrência se dê na via pública. Formalmente, aquela rua estava encerrada ao trânsito durante o período das obras.
De modo que os manobradores dos veículos não careciam de carta de condução.
Era certamente grave o condutor do cilindro ter bebido demais. Mas somente numa perspectiva laboral. Do ponto de vista rodoviário, nada havia a censurar, pois ele não circulava em via pública. Fora cometida uma infracção às normas de segurança no trabalho. Esse processo competia à então Inspecção do Trabalho, correspondente à actual Autoridade para as Condições do Trabalho.
Assim, absolvi o arguido. Haveria alguns problemas a resolver, mas que não competiam ao tribunal, em sede de processo criminal.