sexta-feira

O ARGUIDO QUE JUROU DIZER A VERDADE



As jornalistas Rosa Ramos e Sílvia Caneco assistiram a dezenas de julgamentos no tribunal de pequena instância criminal de Lisboa. No banco dos réus, sentam-se indivíduos acusados de crimes de menor gravidade: condução sem carta, furtos em supermercados, agressões menos importantes ou utilização de veículo em estado de embriaguez, entre outros.
As duas profissionais da comunicação social reuniram em livro as melhores crónicas que descrevem estas audiências. “Sacanas com lei” é uma obra cuja leitura aconselho vivamente. Muito bem escrito e pleno de humor, revela que a justiça não se faz apenas de crimes mediáticos ou com graves consequências.
O modo como o livro se encontra redigido é algo ficcional, embora inspirado em casos reais. Não podemos esperar que tudo seja fielmente reproduzido, exactamente como ocorreu na sala onde se realizou o julgamento.
Aliás, verifica-se um lapso, de certo relevo.
O arguido João Paulo fora apanhado novamente a conduzir a sua mota, sem que possuísse habilitação legal. Nunca tirara a carta.
De acordo com a narração de Sílvia Caneco, a dada altura, o juiz relembrou ao arguido: “prestou juramento em tribunal”.



DIZ O QUE LHE APETECE 
É claro que tal não aconteceu.
As testemunhas que prestam depoimento em tribunal juram dizer a verdade, antes de serem inquiridas. Os peritos prestam um compromisso de honra, assumindo o dever de desempenhar fielmente as suas funções.
O acusado nunca presta juramento nenhum. Não se declarara obrigado a contar a verdade.
O arguido apenas deve comunicar com exactidão os dados respeitantes à sua identidade: nome, data e local de nascimento, filiação e estado civil. Além disso, cabe-lhe informar se existem outros processos pendentes contra ele.
No que respeita à matéria de que é acusado, ao crime que lhe é imputado, o arguido é livre de se remeter ao silêncio ou apresentar a sua versão dos factos. Não se encontra sob juramento. Se decidir pronunciar-se, responde conforme lhe parecer mais adequado. O final do julgamento é marcado pelas últimas declarações do arguido. Ele pode dizer tudo o que entender, a bem da sua defesa.
De resto, ao juiz está vedado manifestar opiniões ou tecer comentários dos quais se possa inferir alguma apreciação sobre a culpabilidade do acusado. Esta regra nem sempre é observada. Por vezes, o juiz tende a verbalizar uma ou outra nota que deixa transparecer a sua visão sobre a responsabilidade do arguido. Tal é estritamente proibido.
É fundamental reforçar que, durante o julgamento, o arguido só fala se quiser, nunca jurando depor com verdade. Mesmo dispondo-se a pronunciar-se, pode sempre recusar responder a uma ou outra pergunta.
Ainda que se encontre sob prisão, no decurso da audiência, não pode estar algemado. Apenas é viável que os guardas prisionais estejam presentes na sala. Sempre que desejar, o acusado pode trocar impressões com o seu advogado.



DE PÉ 
É da praxe judiciária que o arguido se coloque de pé quando é interrogado.
Em 1984, no Tribunal de Albufeira, realizou-se o julgamento de Al Awad. Estava acusado de haver assassinado Issam Sartawi, um líder palestiniano que participava no congresso da Internacional Socialista. A reunião teve lugar no Hotel Montechoro.
O arguido recusou levantar-se e permaneceu sentado no banco dos réus. Tal vai contra os ritos do tribunal. Mas não se pode considerar que seja uma conduta ilegal ou passível de reacção por parte do juiz.
Al Awad foi absolvido e cumpriu apenas um ano e seis meses de prisão, por uso de passaporte falso. O crime de homicídio ficou impune, embora quase todos estivessem convencidos de que o autor do crime tinha sido efectivamente este jovem de 24 anos.