Está a decorrer o julgamento de Ricardo Cunha, antigo
administrador do Supremo Tribunal de Justiça. É acusado de ter simulado compra
de obras de arte e de se ter apropriado de alguns quadros. No total, terá
lucrado mais de 300 mil euros.
Para se defender, alegou que tudo aquilo era normal. Aliás,
o presidente do tribunal até tinha autorizado a oferta de uma joia em prata, no
valor de onze mil euros à mulher do chefe de estado de então, Jorge Sampaio. A
antiga primeira-dama depôs em tribunal. Desmentiu tudo. Se lhe tivessem dado
uma lembrança tão valiosa, ela não esqueceria. A doação ficaria registada no
livro de presentes de Belém.
Não há razões para duvidar de Maria José Ritta.
Provavelmente, não houve joia nenhuma. Apenas foram
entregues onze mil euros a um ourives, que passou um recibo. Depois, deve ter
sido uma festança com várias personagens, a dividir o dinheiro.
Ou, então, tratava-se de um objeto em prata, de baixo
custo, mas pelo qual os contribuintes pagaram aquela soma exorbitante.
HÁ MAIS DE 70 ANOS
Não é a primeira vez que ocorrem problemas financeiros com
um responsável do Supremo Tribunal de Justiça.
Em 1938, os jornais noticiavam que António Vicente, o
tesoureiro-contador do Supremo, desviara dinheiro, tendo fugido para parte
incerta.
O caso terminou encoberto, sem haver julgamento e com o
foragido de regresso à Função Pública.
António Vicente era um convicto republicano e firme
opositor do regime ditatorial instaurado em 28 de Maio de 1926, que levaria
Salazar ao poder. Envolveu-se em reuniões conspirativas que visavam derrubar o
presidente do conselho.
O governo começou por reagir de forma leve relativamente
a este homem que não era da situação. O tesoureiro do Supremo Tribunal auferia
um salário-base de mil e duzentos escudos. Acrescia uma percentagem sobre os
emolumentos. Tal significava que António Vicente acabava por ganhar entre 5 a 6
mil escudos mensalmente.
Pois, nesse ano de 1937, foi publicada uma portaria,
retirando-lhe o benefício. Os emolumentos constituiriam, na sua totalidade,
receita do Estado.
O tesoureiro apenas ganharia o vencimento.
Era insuficiente para o governo da sua família.
António Vicente não fez caso da portaria. Continuou a
cativar para si o montante que sempre lhe coube, em função dos emolumentos
cobrados.
Simultaneamente, integrava um grupo que preparava o
derrube do regime, com a colaboração do coronel Manuel António Correia.
INSPEÇÃO
Até que, um dia, inspetores do Ministério da Justiça
compareceram no Supremo e obrigaram o contador a entregar as chaves dos vários
cofres. Logo os jornais anunciaram que aquele funcionário judicial estava
indiciado por roubo, abuso de confiança ou peculato.
António Vicente desapareceu, mas tinha dificuldade em
encontrar refúgio em Lisboa. Havia muitas habitações onde adversários do Estado
Novo eram acolhidos, escapando à PVDE, antecessora da PIDE. Mas aquele caso era
demasiado mediático e revestia contornos que não tinham exatamente natureza
política.
Durante uns dias, o indivíduo permaneceu numa casa para
os lados do Campo dos Mártires da Pátria. Todavia, a proprietária não estava
disposta a arriscar muito e fez-lhe um ultimato. No dia em que ele tinha mesmo
de sair daquela habitação, havia um encontro marcado com o tal coronel Correia.
Vicente implorou-lhe:
- Você já foi preso 3 vezes e das 3 vezes evadiu-se.
Agora, está nalgum local que deve ser bem seguro, pois a polícia não o encontra.
Deixe-me ficar consigo por uma semanas. Estou a preparar a minha fuga para
a Argentina.
Acrescentou:
- Juro-lhe pela minha filha, que é o que de mais
sagrado tenho, que nunca revelarei o sítio do esconderijo.
O militar acedeu. Para enorme surpresa do oficial de
justiça, entraram na habitação onde residia a família de Manuel António Correia.
A polícia ia lá com imensa frequência, passava buscas a pente fino e nunca
conseguia localizar o fugitivo.
NO TEMPO DE D. MARIA
O segredo estava no seguinte. Tratava-se de uma casa
térrea, já antiga. No século XIX, fora construída uma cave secreta, por forma a
esconder um miguelista, no período em que Costa Cabral chefiava o governo de D.
Maria. O acesso era feito por uma porta disfarçada no chão, simulando as tábuas
do soalho. Por cima, era colocado um tapete. Sempre que a polícia política
surgia, Manuel António Correia resguardava-se no esconderijo, que nunca foi descoberto.
O espaço passou a acolher duas pessoas. O dono da casa,
onde vivia com a mulher e as duas filhas. E também o tesoureiro, que ali estaria
até partir para a América do Sul.
Durante o dia, os dois ausentavam-se com disfarces, de
modo a participarem em reuniões políticas e também de forma a António Vicente
matar saudades dos seus familiares.
Rapidamente, o filho do contador apercebeu-se de que o
pai se escondia no mesmo sítio onde Manuel Correia ficava acoitado. O rapaz
ignorava onde se localizaria o refúgio. Mas tinha a certeza de que os dois
homens permaneciam no mesmo sítio.
O moço foi negociar com a polícia. Sabia que a captura
do coronel era muito mais importante do que a prisão do tesoureiro-contador. António
Vicente apenas se apoderara de uma quantia relativamente pequena e a que antes
tinha tido direito.
A proposta da PVDE consistiu em oferecer uma elevada
soma em dinheiro ao funcionário judicial, abafar o processo e dar-lhe uma outra
ocupação laboral. Tudo em troca da informação sobre o lugar onde poderia ser
preso o coronel Manuel Correia.
Em conversa privada com o filho, António Vicente disse
aceitar as condições. Regressado à casa daquele que o hospedava, contou que era
chegada a hora de partir para a Argentina. Pegou nos seus haveres e despediu-se,
fingindo-se comovido e grato.
O JOVEM ROSA CASACO
Dias depois, pela manhã, bateram à porta da casa onde
vivia a mulher de Manuel Correia com as duas filhas. A brigada anunciou: “Polícia!”.
Iniciou-se a habitual rotina. Manuel Correia desviou o
tapete e abriu a porta que dava acesso à cave secreta. Já do lado de dentro,
correu as trancas. A esposa voltou a colocar o tapete no sítio.
Esperava-se que os agentes efetuassem a habitual busca,
saindo sem encontrar o homem da casa.
Mas tudo foi diferente. No grupo, vinha António Rosa
Casaco, jovem de 23 anos, que mais tarde executou o assassinato de Humberto
Delgado. Os polícias foram direitos ao tapete e levantaram-no. Sem dificuldade,
localizaram a porta camuflada e estroncaram-na. Um deles gritou:
- Senhor coronel Correia, saia desarmado e de mãos no
ar!
O relato desta quarta detenção consta do livro
auto-biográfico “Memórias de um resistente às ditaduras”.