sábado

TRIBUNAL DO POVO


Em 11 de Março de 1975, falhou um golpe de estado, organizado pelo marechal António de Spínola.
As consequências foram as opostas ao que o putsch pretendia. O governo tomou medidas na linha do que era preconizado pelo partido comunista. A banca e os seguros foram nacionalizados.
Por outro lado, a esquerda radical passou a atuar com maior à-vontade. Sucediam-se as ocupações selvagens de imóveis. Criavam-se comissões de moradores, à semelhança das organizações populares de base do regime soviético. Soldados percorriam o país, promovendo sessões de esclarecimento. Importantes empresas entraram em autogestão. Ocorriam constantes saneamentos de quadros empresariais e de dirigentes da Função Pública.
O ritmo dos acontecimentos era tal que se tornava imprevisível o que poderia acontecer no dia seguinte. Além disso, já nada surpreendia ninguém.



ARMAS DE ARREMESSO

Porém, o sistema judicial mantinha-se em funcionamento, de modo mais ou menos indiferente aos acontecimentos políticos.
Os tribunais plenários já tinham sido extintos.
Obviamente, verificava-se adesão dos juízes às novas leis. Até poderia haver alguma tolerância relativamente à agitação política que se vivia.
Ficou famosa a absolvição de manifestantes que lançaram tomates contra agentes policiais, em Lisboa. O magistrado fundamentou a sua decisão com uma afirmação que foi muito citada pela comunicação social. Tornou-se célebre a frase constante da sentença: “os tomates não são arma de arremesso”.
Mas, de um certo modo, até havia maior rigor para com os delinquentes que eram capturados. Em Julho de 1975, foi aprovada a lei dos crimes incaucionáveis. Os suspeitos de infrações mais graves ficavam automaticamente em prisão preventiva até à data do julgamento. Era o caso dos ladrões de auto-rádios, dos assassinos e dos ratos de automóveis.


O JORNAL

Por essa altura, havia maior número de anúncios judiciais publicados na imprensa.
Encontrando-se o réu em parte incerta, é ele chamado a contestar o processo por meio de edital, reproduzido num periódico. As vendas de bens penhorados são também publicitadas.
Nesses tempos, o advogado que representava o autor da ação recolhia uma cópia do edital e geralmente mandava inserir o anúncio numa publicação local. Além do texto subscrito pelo juiz, o anúncio era encimado pelo nome do jornal e respetiva data.
Ora no Seixal havia já, desde 1950, um jornal com o título “Tribuna do Povo”. Pertencia à paróquia, era dirigido por um padre e mostrava-se insuspeito em matéria de colagem às correntes esquerdistas.
Certamente por iniciativa de algum galhofeiro, e não por mera distração, saiu um anúncio judicial com um pequeno lapso. No topo, onde deveria figurar o nome do jornal, constava: “Tribunal do Povo”. Apenas uma letrinha a mais. Depois, seguia-se o texto, mandando citar o réu, ausente em parte incerta, devidamente assinado pelo juiz.
Um exemplar chegou ao ministério da justiça. Foi grande a preocupação.
Naquelas terras seixalenses, acontecia de tudo um pouco. A Siderurgia Nacional já não pertencia a Champalimaud. A fábrica de cortiça Mundet fora intervencionada pelos trabalhadores e por representantes governamentais. O complexo turístico Muxito tinha sido selvaticamente ocupado e transformado em centro logístico da extrema-esquerda.
Ora constatando que o jornal mais lido do Seixal trazia um anúncio do “Tribunal do Povo”, o caso foi levado muito a sério. Já se imaginava que tinha sido instalado um órgão judicial independente do Estado, comandado por populares.
Altos funcionários do ministério compareceram no pequeno edifício que albergava o legítimo e único tribunal da localidade. Esperavam o pior. O equívoco acabou por ser desfeito, em conversações com o juiz, o delegado do procurador da república e os advogados da comarca.