Como é que se explica ao povo da Ucrânia o modo de
funcionamento da justiça portuguesa? Dois homens são selvaticamente
assassinados no Ribatejo. Efetuado o julgamento, ninguém vai para a prisão.
Em 2006, na cidade de Almeirim, foram encontrados dois
cadáveres de cidadãos ucranianos, em adiantado estado de decomposição. Tinham
sido espancados até à morte.
Cinco anos depois, a Polícia Judiciária capturou dois
homens portugueses, de 26 e 38 anos. São cunhados entre si. Confessaram aos
inspetores a autoria do crime. Estiveram em prisão preventiva.
Certamente defendidos por um bom advogado, remeteram-se
ao silêncio durante o julgamento, que agora terminou.
O tribunal absolveu-os, por falta de provas.
A juíza-presidente afirmou que “duas pessoas foram barbaramente assassinadas e a culpa vai morrer
solteira. A justiça dos homens não se fez”.
Obviamente, todos concordamos com estas palavras,
lapalissianas. Não é preciso ser um génio para chegar a essa conclusão.
DOIS ERROS
Todavia, dois erros foram cometidos.
Uma das faltas assume menor relevo.
É que a juíza disse também o seguinte: “o tribunal está de consciência tranquila,
mas sabe quem matou as vítimas”. Processualmente, trata-se de uma atitude
incorreta. Se o juiz sabe quem é o autor do crime, é obrigado a condená-lo.
Se o julgador decide absolver o arguido, não pode tecer
quaisquer considerações. Antigamente, era relativamente comum ouvir um
magistrado declarar: “Você vai absolvido,
mas o tribunal não aprova a conduta de que estava acusado”. Ou, então: “fiquei com dúvidas e tenho de o absolver,
porque vale mais um criminoso na rua do que um inocente na prisão”.
Felizmente, perdeu-se este hábito de fazer comentários
aquando da absolvição. Eu julgava que tal já tinha sido completamente erradicado
da prática judiciária. Mas, pelos vistos, esta juíza recuperou um lamentável
costume.
A outra anomalia é muito mais grave.
Na Polícia Judiciária e, logo de seguida, perante o
juiz de instrução criminal, os dois suspeitos confessaram o homicídio. Deploravelmente,
alguns agentes policiais continuam a considerar que a confissão é a rainha das
provas.
Sendo a prática do crime admitida pelos acusados, pouco
esforço se faz em reunir mais elementos probatórios. A polícia e o Ministério
Público descuram a recolha de prova.
Foi o que aconteceu nesta triste ocorrência dos
ucranianos mortos à pancada.
É profundamente inaceitável contar com a confissão e
esperar que, em julgamento, os arguidos queiram falar e reconheçam a sua culpa.
Não é a lei que está mal. O que é absurdo é não
investigar devidamente quando há confissão. Pode ser uma importante ajuda. Contudo, é indispensável carrear provas para o julgamento.
NA PRISÃO
Conheço vários casos em que, patentemente, a confissão
levou a que não se realizasse uma adequada investigação. Dormiram à sombra da
bananeira, fiando-se na Virgem, porque já se tinha extraído a confissão. Vou-me
referir a duas situações.
Num caso, uma mulher inocente cumpriu pena de prisão em
vez do verdadeiro criminoso. Noutra situação, o assassino quase ia sendo libertado
antes do julgamento.
Aqui há uns anos, precisamente em Almeirim, uma senhora
telefonou para a Guarda, dizendo que tinha disparado sobre um homem. Quando a
polícia chegou ao local, o indivíduo encontrava-se morto. Tinha sido atingido
com uma bala na cabeça. Aquela pessoa estava apenas a encobrir o verdadeiro
homicida.
A Polícia Judiciária nada fez. Não colheram eventuais
vestígios de pólvora nas mãos da mulher e do outro indivíduo que estava com
ela, aquando do crime.
A mulher cumpriu pena na cadeia de Tires e o outro
ficou à solta.
TESTES DE ADN
Em Sesimbra, um homem estrangulou uma moça de 20 anos,
depois de manter relações sexuais com ela.
No dia seguinte, apresentou-se na esquadra da PSP do
Barreiro, juntamente com a namorada. Admitiu haver tirado a vida à infeliz
jovem e revelou onde escondera o corpo.
Passaram quase 6 meses. O procurador deveria apresentar
a acusação contra o arguido. Os inspetores da PJ e os magistrados do Ministério
Público não tinham feito nada.
O preso foi mais esperto do que eles. Além disso,
contava com uma excelente advogada. Pediu para ser de novo interrogado pelo
juiz. Apresentou uma nova versão. Afinal, aquela confissão era falsa. Na
realidade, quem tinha morto a rapariga fora a namorada do recluso.
A situação era seríssima. Sem confissão, era impossível
redigir o libelo acusatório. O arguido teria de ser solto quando completasse
meio ano de privação da liberdade.
Lá se arranjou uma solução de emergência. De modo algo
forçado, declarou-se a excecional complexidade do processo. Pediram-se análises
de ADN, o que já deveria ter sido feito há muito tempo. O homem manteve-se na
cadeia e cumpre agora 18 anos de prisão.