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ADORMECIDO NO TRIBUNAL



Francisco Sousa Tavares foi um dos mais hábeis e respeitados advogados portugueses. Morreu com 73 anos, há quase duas décadas. Era casado com a poetisa Sophia de Mello Breyner. Como todos sabem, o magnífico escritor Miguel Sousa Tavares é filho do casal.
O causídico teve também uma importante intervenção política. Simpatizante da monarquia, sempre se opôs ao Estado Novo. Pertencia a um grupo de advogados corajosos, que defendia gratuitamente presos políticos perante o tribunal plenário. Após a revolução de 1974, Francisco Sousa Tavares esteve na Assembleia da República, como deputado.
Entre os profissionais do foro, era carinhosamente conhecido por "Tareco", talvez devido ao seu espírito algo buliçoso.
Muito magro, não apresentaria grande propensão para a apneia noturna. Desconheço se, ao deitar, o sono era ou não reparador.
A verdade é que ele era conhecido por ser roncopata e padecer de frequente sonolência diurna.
Muitas vezes, adormecia em plena sala de audiências, no decurso de um julgamento. Amiúde, ressonava.
Se o despertar era mais súbito, Sousa Tavares proferia sempre algumas palavras de protesto.





AO ESTALO

Certa vez, no extinto tribunal militar, era julgado um oficial, acusado de dirigir uma busca ilegal num hotel, durante os tempos revolucionários mais conturbados. Um hóspede estrangeiro elaborou a respetiva participação criminal. Como defensor do réu, estava Sousa Tavares. O queixoso era representado por um outro advogado igualmente conceituado.
Pouco satisfeito com o decurso da audiência, nada favorável para o seu cliente, o Tareco procurou murmurar: "ainda dou dois pares de estalos àquele tipo", referindo-se ao seu colega que estava mandatado pelo tal estrangeiro. Só que com o seu vozeirão típico, Sousa Tavares fez com que as suas palavras fossem ouvidas por todos.
Não esperou pela demora.
Tardou pouco até que o defensor do militar adormecesse, ressonando, como tantas vezes sucedia.
Foi, então, que houve mesmo estalo no tribunal.
O advogado do queixoso interrogava uma testemunha e, a dada altura, disse: "isso não é verdade!". Acompanhou as palavras por uma forte pancada com a mão aberta sobre a bancada onde Sousa Tavares dormia, com o braço apoiando o queixo. Estremunhado, o brilhante causídico disse qualquer coisa como: "tenham paciência!".



VIDA DE CÃO

Uns anos mais tarde, no Tribunal da Boa Hora, Sousa Tavares defendia um réu revel, fugido no México e de onde pôde regressar, após ser absolvido graças ao fabuloso trabalho do seu advogado.
Mais uma vez, enquanto era ouvida uma testemunha, o profissional do foro adormeceu. Dessa vez, acordou traído pelo deslizar do seu corpo. Com grande estrondo, caiu da cadeira. Virou-se para os juízes e declarou:
- É que eu tenho uma vida de cão! Trabalho 16 horas por dia.


A HERDEIRA QUE PAGAVA EM DÓLARES

Na biografia de Jorge Sampaio, agora editada, relata-se um outro episódio em que Sousa Tavares passou pelas brasas num tribunal. Mas, desta feita, no banco dos réus.
Em 1983, ainda vigorava uma lei especial que limitava a circulação de capitais e que punia o tráfico de divisas.
O advogado recebera honorários de uma cliente, herdeira de Madame Lupescu. Foi pago com um cheque de dez mil dólares.
Em vez de depositar a quantia no banco, Sousa Tavares entregou o título de crédito a Joaquim Queirós de Andrada, dono da empresa "Dopa", que se dedicava a fazer render dinheiro na Suíça.
Queirós de Andrada foi preso, mas escapou durante uma deslocação ao hospital de Santa Maria, para uma consulta médica.
Muito dignamente, Francisco Sousa Tavares apresentou a demissão do cargo de ministro da qualidade de vida, que então ocupava. Solicitou ao procurador-geral da república um rápido apuramento dos factos.
Acabou acusado de tráfico de capitais e sujeitou-se a um julgamento prolongado por várias sessões. Pouco depois de ocupar o seu lugar no banco dos réus, adormecia quase instantaneamente. Certa vez, acordado por algum ruído propositado, Sousa Tavares exclamou logo:
- Até parece que estão a julgar um homicida!