domingo

BIOLOGIA OU BUROCRACIA?




Em tribunal, o que prevalece?
Será que a verdade biológica é que conta? Ou, pelo contrário, vinga o que consta do registo civil, o que se encontra inscrito no cartão de cidadão ou no bilhete de identidade?
Por exemplo, um adolescente é apanhado a realizar um assalto. No cartão de cidadão, consta a sua data de nascimento. Por essas contas, terá 15 anos. Mas o perito médico garante que ele já completou 17 anos. Ora a partir dos 16 anos, já se é criminalmente responsável. Poderá ele ser preso?
Ou, então, um homem mata o seu pai biológico. Contudo, a vítima nunca tinha assumido a paternidade. No registo civil, figura que o assassino é filho de pai incógnito. Poderá ele ser acusado de parricídio, o que importa uma pena mais pesada?


EM BARCELOS

Judicialmente, a realidade biológica não conta.
A lei manda considerar como válido apenas o que está inscrito na Conservatória do Registo Civil.
Todavia, aqui há uns anos, ocorreu um estranho caso em Barcelos.
Dois agentes da PSP apanharam um rapaz a conduzir um automóvel, que tinha acabado de furtar. Levado à esquadra, ele identificou-se com o bilhete de identidade. Tinha 15 anos.
No posto policial, atuaram corretamente. Entregaram o garoto, de etnia cigana, aos cuidados da mãe.
Depois, levaram o auto para o tribunal.
Aí é que se estragou tudo.
O procurador-adjunto mandou que o moço se apresentasse perante ele. O magistrado achou-o desenvolvido fisicamente. Calculou que ele tivesse mais do que os quinze anos resultantes do documento de identificação.
Até tinha razão. O adolescente foi submetido a radiografias. As imagens do punho e da mão esquerda permitiram ao médico concluir que ele tinha nascido há 17 anos. A data do seu registo não estava correta.
O pior estava para vir.
O processo foi apresentado à juíza. Ela concordou com o representante do Ministério Público. Considerou que o assaltante era maior de 16 anos. Ainda teve a infelicidade de escrever no processo algo de inadmissível: "o caráter nómada do povo cigano revela, em concreto, um perigo de fuga que só pode ser acautelado mediante a privação da liberdade".
De modo que a juíza ordenou a prisão preventiva do jovem.




HABEAS CORPUS

É claro que a advogada do jovem não se conformou e requereu a sua imediata libertação. Apresentou um pedido de habeas corpus no Supremo Tribunal de Justiça, em Lisboa.
Os juízes ordenaram que o preso fosse libertado.
O acórdão explicou, em poucas linhas, qual é o regime legal.
Há determinados factos da vida que estão obrigatoriamente sujeitos ao registo civil. É forçoso que o nascimento de todos os cidadãos seja inscrito no respetivo assento. Dele deve constar o local onde ocorreu o parto, a data do nascimento, o nome da mãe e, sempre que possível, a identidade do pai.
A lei estabelece que esses factos são considerados como rigorosamente verdadeiros, para todos os efeitos. Não importa se a verdade biológica é outra.
Enquanto não for impugnado judicialmente o assento de nascimento, tudo o que lá aparece é que é autêntico.