Três horas depois de um colega haver recebido
assistência tardia e ter morrido, o recluso dirigiu-se ao gabinete do
enfermeiro da cadeia. Pretendia apurar os valores da tensão arterial.
A resposta do guarda foi desesperante. Se o técnico de
saúde não o convocara, teria de esperar pelo dia seguinte.
Isaltino não se exaltou, mas tentou chamá-lo à razão,
sem êxito:
- Ainda hoje faleceu um companheiro. Eu preciso de
medir a tensão. Não queira ter a responsabilidade de me impedir esse direito.
O Quim, outro preso, mantinha uma boa relação com o
carcereiro e lá conseguiu desbloquear a situação.
É um dos vários episódios narrados pelo antigo
presidente da câmara de Oeiras, no interessantíssimo livro que acaba de chegar
às livrarias: “A Minha Prisão”.
QUESTÕES MORAIS
O tal defunto era meu cliente. Cumpria pena e conheci-o
meses antes da sua morte.
Procurou-me com dois objetivos.
Por um lado, tinha herdado umas propriedades.
Tencionava proceder à partilha com os familiares, que nunca o visitaram no
estabelecimento prisional.
Depois, quando chegasse a altura de pedir a liberdade
condicional, pretendia demonstrar que se encontrava regenerado e pronto a retomar
o exercício da sua profissão, adotando uma conduta civicamente adequada.
MENINO DE SUA MÃE
A vida daquele homem de 50 anos era atribulada. Já
tinha estado preso, sempre pelos mesmos motivos.
Quase de certeza, era o filho preferido de sua mãe, uma
senhora com um nome pouco frequente: Idalina. Havia laços muitíssimo fortes
entre os dois, que se esbateram posteriormente.
Chegado à vida adulta, Jorge enamorou-se de uma
rapariga da sua idade. Casaram, mas já se achavam divorciados quando ele
perdeu a vida na prisão da Carregueira.
A mulher chamava-se Idalina. Tal e qual como a Mãe do
noivo.
Eu não acredito em coincidências. Aquele matrimónio com
aquela pessoa não era fruto do acaso.
Infelizmente, Jorge foi abordando várias outras
senhoras, todas com aquele mesmo nome. Embora elas não consentissem, ele decidia
sempre que tal não constituiria obstáculo a que mantivessem relações sexuais.
E foi assim que se iniciou o seu percurso prisional,
feito com curtos períodos de liberdade, durante os quais o crime se repetia.
Era obsessivo.
EPÍSTOLAS
No calabouço, matinha correspondência com senhoras,
algumas das quais detidas em Tires. A quem dava maior atenção, as que recebiam
cartas mais longas e frequentes, eram as que tinham sido batizadas como
Idalina.
Tratava-se de um homem muito cortês, que surgia impecável
quando nos reuníamos no gabinete destinado aos advogados. Sempre que telefonava
para o escritório, a minha secretária guardava a melhor das impressões quanto à
delicadeza dele.
Certa vez, um outro recluso, que não o autarca caído em
desgraça, abordou-me com um pedido subtilmente formulado. Juntamente com outros
prisioneiros, partilhava a cela com o Jorge. Disse-me:
- O único problema dele é que não recebe visitas. Como
tal, só toma banho quando o Senhor Doutor vem cá ter com ele. Às vezes, o cheiro
dos pés torna-se insuportável.
Era uma situação delicada. Eu não podia recomendar ao
meu cliente para aumentar os cuidados de higiene pessoal.
Limitei-me a conversar com o Jorge sobre a temperatura
da água no chuveiro, o modo como se organizava a sua utilização e a forma de
adquirir sabonetes e desodorizantes, oferecendo-me para o que estivesse ao meu
alcance caso fosse necessário algum auxílio.
IMAGENS
O fim da sua vida permanece um mistério. Apenas é claro
que foi pedido socorro de madrugada, pelas 5h45m, e que ele só recebeu apoio
após as 7h30m. O desfibrilhador trazido pelo INEM já não o salvou.
O caso mereceu algum destaque na comunicação social
durante dois ou três dias. A Polícia Judiciária investigou. Mas o Ministério
Público não acusou ninguém por homicídio.
Eu é que organizei o funeral dele, a 400 quilómetros da
Carregueira. Na carreta, seguia apenas uma colega de escritório e eu próprio.
Na memória, conservo imagens do corpo. No arquivo,
guardo imagens fotográficas do cadáver. São claras lesões provocadas em vida,
quando o sangue ainda circulava.
Lamento que os familiares do finado não tenham desejado
que eu apurasse as circunstâncias em que ocorreu o óbito. Declararam não
pretender gastar mais dinheiro no caso.
Isaltino Morais não saberá tudo, mas certamente dispõe
de mais informações do que eu.
No entanto, o político também enfrentou o silêncio dos
que acompanharam o Jorge nas suas últimas horas de vida: “estavam aterrorizados – alguém os assustou – numa atitude
desculpabilizante, só dizendo que quando o INEM chegou já era tarde. De resto
foi uma branca que lhes deu”.
Foi certeira a previsão dos colegas que homenagearam o
extinto, com um minuto de silêncio no pátio: aquele facto não implicaria “qualquer averiguação extraordinária para
apurar a verdade do que aconteceu”.