Ninguém se congratula pelo drama ocorrido
há dias, numa pequena residencial do Porto. A estalagem Mercador foi
recentemente inaugurada na Rua Miguel Bombarda, nome do famoso médico
psiquiatra assassinado a tiro por um tresloucado.
Felizmente, a tragédia não assumiu as
proporções do drama que vitimou o clínico republicano.
Como é óbvio, o portuense que provocou os
distúrbios encontrava-se também ele profundamente transtornado.
Ninguém o elogia por perseguir a ex-mulher
e instalar-se na guest house onde ela iria pernoitar com o novo namorado. Muito
menos se aplaude o facto de o indivíduo disparar contra o casal, causando-lhes
ferimentos.
Todavia, pouca gente compreende como é que o
sujeito fica em prisão preventiva.
Estão em causa sérias agressões. Justificam
uma robusta reação do sistema judicial. Mas não permitem aplicar a medida de
coação mais gravosa.
A verdade é que o homem que provocou a
agitação na Invicta sofreu as consequências do sensacionalismo jornalístico.
Algumas notícias a seu respeito
assemelhavam-se às reportagens sobre massacres ocorridos em escolas
norte-americanas.
CONFUSÃO
Em 1918, Reinaldo Ferreira, jornalista de
“O Século” armou uma confusão dos diabos.
O famoso “Repórter X”, como também era conhecido, vestiu-se de mulher e
maquilhou-se em conformidade.
Juntou-se a dois amigos. Um deles era o
célebre Stuart de Carvalhais, magnífico ilustrador da imprensa. Armando Bastos,
igualmente artista plástico, nunca atingiu muita fama como pintor, pois morreu
cedo, aos 34 anos.
Dois deles instalaram-se numa pensão da Rua
dos Fanqueiros, em Lisboa. Abriram a janela. Acesa discussão foi simulada pelo
casal. Sim, porque, na altura, casal era necessariamente um homem e uma mulher.
Tratava-se da dupla composta por Stuart e pelo travestido Reinaldo.
Gritos, movimentos bruscos, móveis a serem empurrados
e até uma faca empunhada pelo pretenso agressor: tudo gerou a atenção de
vizinhos.
Em particular do morador de um terceiro
andar em frente. Fora apanhar ar, a ver se aliviava a bronquite asmática que o
impedia de conciliar o sono.
Depois, aproximou-se um automóvel com as
luzes apagadas. A buzina foi acionada sem parcimónia, por Armando, o comparsa
que seguia ao volante. Este saiu da viatura, juntando-se ao desenhador, já no
rés-do-chão. Para dentro do veículo, transportaram um volumoso embrulho e
partiram.
No quarto, estava a faca bem suja, mas
tão-somente com sangue de galinha. Os mesmos vestígios hemáticos salpicavam as
paredes.
REPORTAGEM
Nos dias seguintes, não faltou serviço a
Reinaldo Ferreira, já trajado em conformidade com o sexo masculino.
O profissional da
comunicação social. Recolheu declarações junto de Domingos Inácio,
guarda-noturno. Obteve a informação, nada surpreendente, de que mulher
e marido comunicavam em língua francesa.
Entrevistou o pessoal da unidade hoteleira.
Mas deparou-se com um muro de silêncio. Puseram em causa a ocorrência de algum
crime. Com muito acerto, aliás.
Júlia Leal, a proprietária, elucidava mesmo
que o vizinho asmático não passava de um mentiroso.
O título que o redator escolheu para o
artigo que se destacava na primeira página prometia ulteriores investigações: “O mistério da Rua dos Fanqueiros adensa-se”.
Em busca da personagem gaulesa, por ele
próprio incarnada no dia do pretenso crime, descobriu a identidade de uma senhora
residente em Lisboa. Já não era vista há algum tempo, embora fosse pessoa
conhecida, tanto mais que até recebera uma condecoração do Estado Português.
À porta do restaurante “Os Patos”, daquela
mesma artéria da capital, o repórter travou conversa com um cocheiro. A
criatura tinha notícias do tal casal, que, inadvertidamente, deixara cair um
recorte de jornal sobre um crime ocorrido pouco antes, em Madrid. O Museu do
Prado fora assaltado em setembro. Era provável que os estrangeiros tivessem
alguma ligação ao roubo de arte.
SERVIÇO PÚBLICO
Não tardou muito até que o próprio Reinado
Ferreira confessasse o embuste.
Justificou-se, apresentando um
esclarecimento. Pretendia apenas denunciar uma situação preocupante.
Hotéis, pensões, estalagens e residenciais ocultavam
às autoridades a criminalidade ocorrida entre portas. Roubos, agressões e até
assassinatos passavam em claro.
Impressionados com publicidade negativa e temendo
algum encerramento temporário para investigações, os responsáveis pelas
unidades turísticas optavam por camuflar estes acontecimentos.
Tal impunha uma mudança de atitude. Não se
podia continuar a prejudicar o combate à delinquência.
No fundo, o “Repórter X” apenas encenara a farsa com o objetivo de que aquele
estado de coisas sofresse uma alteração.
Portanto, serviço público e não meras invenções
sensacionalistas.