sábado

MUITO ÍNTIMO



Na terminologia legal, importa distinguir privacidade e intimidade.
Correntemente, vida privada e vida íntima são, por vezes, expressões utilizadas de modo equivalente.
Na verdade, correspondem a duas realidades distintas. Tal implica algumas consequências jurídicas.
Em 1994, Cavaco Silva era primeiro-ministro há quase uma década. Durante esse período, Portugal desenvolveu-se notavelmente. Todavia, não era garantido que o líder do governo candidatar-se-ia novamente a chefe do executivo.
Um jornalista descobriu que o político tinha mandado fazer obras na casa-de-banho do seu primeiro andar na Travessa do Possolo, em Lisboa.
As loiças e as torneiras encontravam-se desatualizadas. Aníbal habituara-se ao conforto do Palácio de São Bento, onde até mandara construir uma piscina. Agora não fazia muito sentido dispensar uma boa misturadora no lavatório onde passaria a fazer a barba após deixar o cargo.
Ali estava a prova de que o algarvio abdicaria da presidência do PSD. Já não disputaria as eleições legislativas de 1995. Regressaria à sua modesta casa, ampliada por uma marquise que viria a dar que falar uns tempos mais tarde.


VALE DE LENÇÓIS

Cavaco ficou transtornado.
Indignou-se pelo facto de um jornal noticiar algo que dizia respeito à sua vida privada, ao interior do lar que adquirira com o seu vencimento de professor universitário. A comunicação social não tinha nada que andar a divulgar o que ele fazia dentro das paredes do seu apartamento.
Não tinha razão.
De um modo geral, as figuras públicas não têm direito a resguardar a sua vida privada, longe dos olhares dos cidadãos.
Apenas lhes assiste a faculdade de manter reservada a vida íntima. O que se passa no quarto, no leito conjugal, na vida sexual respeita a um campo muito mais restrito da vida privada. Trata-se de um pequeno núcleo integrado na privacidade. No entanto, abarca apenas o âmago pessoal.
Aí sim, no que concerne à intimidade, a comunicação social nada pode difundir.


CAPACHINHO

Os repórteres decidiram certificar-se de que tinham agido corretamente. Socorreram-se de um lente da Universidade de Coimbra: Costa Andrade, homem que chegara à idade adulta com a quarta classe.
Após cumprir o serviço militar, completou os estudos. Doutorou-se, tendo como especialidade o Direito Penal.
O docente explanou, de modo bem claro, aquilo que já era sabido por quem trabalhava nas redações dos mass media.
Doenças, compras de roupa, idas ao cabeleireiro, férias passadas em hotéis, cirurgias, refeições organizadas em casa, depilações, discussões matrimoniais, tratamentos dentários, capachinhos para disfarçar a falta de cabelo, remodelações, encomendas de mobiliário ou aplicações financeiras referem-se à vida privada. Porém, não cabem naquele conceito muito mais limitado de intimidade, que é absolutamente intocável.
Portanto, estava tudo bem. Fazia todo o sentido noticiar os trabalhos nas instalações sanitárias de Cavaco Silva.
Assim como, mais tarde, nada impediu que surgissem artigos sobre o estado de saúde das mulheres de António Guterres e Passos Coelho.


QUEM TRAMOU MANUEL?

Manuel da Costa Andrade tramou-se.
Desde os tempos de Sá Carneiro, era deputado do Parlamento, pelo PPD/PSD. Integrara a Assembleia Constituinte e nunca mais deixara o seu assento no hemiciclo, que frequentou ao longo de duas décadas.
Fernando Nogueira sucedeu a Cavaco e organizou as listas de candidatos do seu partido às legislativas de 1995. Excluiu o professor coimbrão.
Afastado da intervenção política, Andrade colaborou numa importante obra coordenada por Figueiredo Dias, de comentário ao Código Penal.
Aí explica-se detalhadamente, com caráter científico-académico, a distinção entre vida privada e vida íntima.