Durante as férias de Verão, alguns processos judiciais
são considerados urgentes. Tudo o que a eles diga respeito continua a ser
decidido. Antes do início do período estival, todos os juízes da comarca
reúnem-se e organizam uma escala de serviço de tal forma que diariamente um
deles fica de plantão, como dizem os nossos irmãos brasileiros. Geralmente,
calham dois ou três dias a cada magistrado.
É um regime cómodo que permite depois gozar um longo descanso.
Beneficiei do modelo durante uma época em que o mesmo
me era particularmente vantajoso.
As minhas pequenas eram mesmo pequenas. Assim, dispunha
de um largo ciclo de praia. Eu permanecia sentado, à sombra, com um livro na
mão, enquanto elas nadavam nas pacíficas águas de Sesimbra. Ocasionalmente,
espreitava, observando a sua alegria, antes de me juntar a elas para umas
braçadas em família.
Atualmente, em matéria de ócio, adoto um sistema que também
me agrada.
Corresponde ao que eu fazia há 20 ou 25 anos.
Várias vezes no mesmo ano, tiro fins-de-semana
prolongados. Percorro sítios que desconhecia totalmente, vivendo intensamente
cada hora que passa. Um pouco à maneira dos japoneses que têm uma semana de
férias após cinquenta e uma em que não param de trabalhar.
AGRESSÃO EM PONTE DE SOR
Em 2004, eu desempenhava as funções de Juiz no Tribunal
de Ponte de Sor.
Era um círculo judicial vasto, com vários tribunais e
poucos juízes. De modo que a cada um dos juristas couberam seis dias
consecutivos de turno, o que implicava prestar serviço em Abrantes, Golegã,
Entroncamento e Mação, para além do tribunal onde eu me encontrava
permanentemente.
Estava-se em agosto e tinham passado já cinco dias da
minha escala, com diligências da mais diversa índole, umas mais simples do que
outras, incluindo um dramático caso ocorrido não muito longe do meu tribunal.
Tratava-se de um abastado comerciante assassinado com
um tiro na cabeça e a cujo cadáver lançaram chamas numa casa ponte-sorense
abandonada.
É uma terra que não chega a contar com oito mil habitantes.
Mas tem uma propensão para a tragédia como eu nunca vi.
FENOMENAL
Na manhã do sexto e último dia, fui ao Entroncamento realizar
um interrogatório que me impressionou.
Cumpria-me inquirir um indivíduo de quarenta e poucos
anos, mas que previsivelmente iria morrer em breve, devido a um problema
oncológico. O julgamento encontrava-se marcado, sendo quase certo que, no dia
aprazado, ele já não estaria entre nós. Impunha-se colher declarações para
memória futura.
Ainda ouvi, também como testemunha, um quadro superior
da caixa de crédito agrícola, que viria a encontrar dez anos mais tarde à mesa
do pequeno-almoço num hotel de Nova Déli. Quando ele me falou das suas origens
entroncamentenses e da sua atividade profissional, compreendi que estava perante
a mesma pessoa.
Na cidade ferroviária do centro de Portugal,
rapidamente terminei o serviço.
ESCUTO
Chegada a hora do almoço, recebi um telefonema do
Tribunal de Mação, hoje extinto, mas cujo renascimento, à imagem de Fénix, é
muito desejado.
Parecia ser coisa simples. A GNR tinha apanhado um
condutor embriagado. Desde que ele confessasse, como quase todos fazem, e não
tivesse cadastro, aplicar-lhe-ia uma multa e ordenaria a apreensão da carta por
alguns meses.
Daria por encerrado o meu turno de Verão e regressaria
para junto de minhas filhas, ainda usufruindo de alguns mergulhos na piscina.
Afinal, não era nada do que eu imaginava.
Seis carros estacionados, uns atrás dos outros, tinham
sido sucessivamente embatidos por um veículo que circulava aos ziguezagues. O
automóvel causador dos estragos era um velho Renault 11, que ficou enfiado numa
valeta, com o eixo da roda quebrado, incapaz de circular.
Nitidamente, quem seguia ao volante decidira abandonar
o local. Em bom estado, a viatura já pouco valeria. Naquelas condições, não
merecia incómodos e apenas justificava uma discreta retirada estratégica a pé.
Um dos carros danificados era do presidente da câmara
maçaense. Outro pertencia a um idoso, já com 92 anos, que morava perto do local
onde se dera o acidente.
Foi este último que alertou a polícia, mas pedindo que
não o envolvessem em problemas. Assistira a tudo, até conhecia o dono do Renault,
mas só queria que lhe pagassem o arranjo do veículo.
Dois guardas bateram à porta do infrator e
submeteram-no ao teste do balão. Sem grande surpresa, acusou uma taxa superior
a dois gramas de
álcool por litro de sangue.
SUMARIAMENTE
Iniciei o julgamento sumário, ainda convencido de que,
fazendo jus à forma processual aplicável, tudo seria conciso. Até que o arguido
me contou:
- Senhor Doutor Juiz, eu causei o acidente. Não nego.
Mas não tinha bebido nada. Fiquei tão perturbado com aquele desastre que me fui
logo embora para a minha residência.
Eu pus-me logo a imaginar o que viria a seguir. Dessa
feita, não falhei muito na estimativa:
- Com os nervos, peguei numa garrafa de aguardente
caseira e sentei-me no sofá. Não parei de beber até os senhores agentes
aparecerem – prosseguiu o sujeito.
Portanto, ele encontrava-se completamente sóbrio no
momento em que destruiu o carro do edil seu conterrâneo e os outros cinco
veículos. Os militares da Guarda já o apanharam ébrio, mas isso era por causa
da pinga ingerida posteriormente.
Aliás, o acusado propôs que eu fosse à sua habitação
observar o recipiente que ainda continha o resto da bagaceira. Via-se logo que
era um produto artesanal, que não se comercializava em lado nenhum. O homem só
poderia mesmo ter-se metido nos copos após o choque, porque daquilo não se
encontrava em mais lado nenhum.
COMO DIZ QUE DISSE?
Lá tive de ordenar que fosse convocado o pobre do
ancião que testemunhara tudo.
Sabia onde o condutor tinha comido um bom almoço, bem regado.
Avistara-o a cambalear a caminho do lar, virando costas ao velho automóvel que
conduzia.
Foi um caso sério para o oficial de diligências
convencer o senhor de que era obrigado a prestar depoimento.
Compreensivelmente, houve que aguardar longamente para o notificado envergar um
fato condizente com o local para onde se tinha de dirigir.
A cordial testemunha fez questão de elaborar uma
exposição prévia narrando por que motivo se vira forçado a alertar as
autoridades, embora não desejasse mal a ninguém.
Duro de ouvido, nunca conseguiu escutar as perguntas à
primeira tentativa.
Com as suas importantes declarações, fiquei sem
dúvidas. O réu etilizou-se enquanto almoçava num modesto restaurante. A
condenação tornou-se possível.
Porém, já deixei Mação após as oito da noite.