Todos concordam com Voltaire. O erro judiciário é mais
chocante quando se trata de um inocente que apodrece na cadeia do que nos casos
em que um criminoso culpado é deixado à solta.
Armindo foi condenado a vinte anos de prisão por assassinar
a própria tia, cuja vida foi roubada em Famalicão.
Em julgamento, o pobre indivíduo protestou a sua
inocência.
Foi deficientemente interpretada a sua participação
numa suposta reconstituição, que, na realidade, consistiu apenas em prestação
de declarações no local do crime.
A estratégia de defesa claudicou e o acusado foi
mesmo julgado autor do flagício.
Quando ele já cumpria pena, apanharam o verdadeiro
homicida. O inculpado foi mandado em liberdade após muito penar injustamente no
cárcere.
Repugna.
CAPITAL
Mas também nos sentimos mal quando alguém é inocentado
sabendo-se que o acusador tinha razão e que deveria haver lugar a punição.
É o caso de Fernanda Salomé Oliveira.
No Porto, ela mandou matar o marido. Os homens
contratados não aceitaram o serviço e denunciaram-na.
Acabou absolvida. Também por falha de interpretação,
não da prova, mas da própria lei.
O Supremo Tribunal de Justiça fixou a jurisprudência no
sentido de que a encomenda de um assassinato ultrapassa um mero ato
preparatório, traduzindo-se em verdadeira tentativa de homizio nos casos em que,
felizmente, o pecado capital não chega a ser cometido.
Fugindo a esta orientação, o tribunal ilibou a mulher.
Certamente a acusação interporá recurso. Mas não é
garantido que a Relação venha a anular aquela decisão.
EVITÁ-LO
O erro judiciário, favorável ou prejudicial ao
suspeito, é uma inevitabilidade do sistema. Não há métodos infalíveis de
aplicar a Justiça.
O que se consegue atingir é a redução do número de episódios
em que a sentença é desacertada.
Evitam-se os erros judiciários de duas formas.
A primeira consiste em deferir os casos mais
importantes a um órgão colegial. Se está em causa uma longa pena
de prisão a que o arguido está eventualmente sujeito, não será apenas um juiz a decidir.
Sempre que existe a possibilidade de condenação
superior a cinco anos, o tribunal é composto por três juízes ou então por estes
mais quatro jurados, todos com igual direito de voto.
É fácil um homem enganar-se. Mas quando são várias
pessoas a deliberar, as hipóteses de falha diminuem.
Quatro olhos vêem melhor do que apenas dois, dizem alguns.
Por outro lado, assegura-se melhor a isenção e
imparcialidade. É mais difícil ser tendencioso quando se está acompanhado.
Logo desta maneira cria-se um filtro inicial que
permite estimar que o julgamento será correto.
A natureza plural do tribunal, sempre composto por
número ímpar de membros para afastar empates, é o começo de um esquema
destinado a prevenir equívocos.
RECURSO
Todavia, ainda acresce um segundo fator que irá conferir uma garantia adicional contra incertezas.
O juízo da primeira instância não é definitivo. Fica
adstrito a uma reapreciação por tribunais superiores. Verificam se a determinação
primitiva está ou não certa.
O direito a recurso origina um escrutínio das sentenças
que faculta uma nova avaliação do caso em sede mais elevada.
Aqui está-se perante controlo de qualidade, revisão por
terceiro.
DUPLA
Ora no caso da ré mandada em paz depois de ordenar a
eliminação do esposo, o julgamento no Supremo Tribunal iria certamente conduzir
à correção do problema. Ela seria condenada em conformidade com a doutrina do
acórdão que firmou a correta exegese legal.
A dificuldade consiste no seguinte. De há nove anos a
esta parte, os recursos foram muito restringidos e deixou de ser possível
impugnar muitas resoluções que anteriormente estavam sujeitas ao crivo da catedral
do sistema judicial português.
Criou-se a noção de dupla conforme. Se a Relação
confirmar o que foi decidido pelo tribunal de base, haverá dois órgãos com a
mesma posição. É pequena a probabilidade de ambos terem errado. Não se
justificaria atribuir mais uma vez o benefício do recurso. A não ser que esteja
em causa mesmo uma sanção severa, mais de oito anos de privação da liberdade,
caso em que se continua a consentir que o processo suba ao foro do Terreiro do
Paço, em Lisboa.
Compreende-se a lógica desta solução. Se a pessoa foi
inocentada ou sentenciada a menos de um décimo da sua vida atrás das grades, havendo
a concordância de um dueto de tribunais, é baixa a chance de um grave erro
judicial.
SUPREMO
Regressando à tentativa de homicídio, é bem provável que o tribunal da Relação do Porto venha a aceitar o que foi decidido pelos magistrados que julgaram a candidata a assassina.
Se assim for, ela continuará em liberdade e o caso
nunca chegará ao mais alto areópago.
É verdade que, em certos casos, torna-se possível
recorrer diretamente para o Supremo, sem que o processo passe pela Relação. Mas
tal comporta riscos e implica renunciar ao direito de impugnar a decisão sobre
os factos provados.
É tempo de perceber que a limitação dos recursos
aumentou a sucessão de erros judiciários.