Desde que ela nasceu, começou a ostentar dois apelidos frequentes no nosso país. Conjugados, remetiam para ilustre ascendência.
Entre os seus antepassados, mais
diretamente figurava naturalmente o pai, advogado de profissão. Mas também um
outro ilustre jurista, o bisavô, que ocupou a pasta das finanças de vários
governos monárquicos, tendo chegado a ser primeiro-ministro do Rei D. Carlos
durante pouco mais de um ano.
Manuela, a descendente, nascida no decurso
da neutralidade lusa perante a II Guerra Mundial, inclinou-se mais para os
números do que para as letras.
Formou-se em economia e casou com um colega
de profissão, de seu apelido Leite.
Ao longo de uma brilhante carreira
profissional e política, não usou os sobrenomes Dias Ferreira e ficou conhecida
como Manuela Ferreira Leite.
Após o divórcio, conservou o apelido de
inspiração láctea, tal como permitido pela lei, pois o seu nome estava
consolidado daquela forma.
APELIDOS
O Código Civil começou por estabelecer que
“a mulher tem o direito de usar os
apelidos do marido”. Mas, prudentemente, acautelava o futuro: “Falecido o marido, pode a mulher ser privada
pelo tribunal do direito ao nome do marido, quando pelo seu comportamento se
mostre indigna dele”.
Veio a Constituição democrática de 1976 e a
legislação teve de ser modificada para se coadunar com o princípio da
igualdade. Agora, o compêndio normativo das relações entre particulares
autoriza algo que tem conduzido a várias interpretações: “Cada um dos cônjuges conserva os seus próprios apelidos, mas pode
acrescentar-lhes apelidos do outro até ao máximo de dois”.
ACÓRDÃO
O texto do mais importante acórdão do
Supremo Tribunal de Justiça sobre esta matéria não consta das bases de dados da
Internet.
Em dgsi.pt,
apenas se encontra um brevíssimo sumário de duas linhas.
Mas a revista Coletânea de Jurisprudência, na sua versão impressa, reproduziu o
teor integral desta decisão proferida em 14 de outubro de 1997, cujo relator
foi o saudoso Conselheiro Armando Torres Paulo.
COELHO BRANCO
O caso envolvia um juiz, de quem eu fui
colega no Tribunal de Setúbal.
O Tribunal da Relação de Lisboa tinha
deliberado que ele haveria de mudar de nome para Coelho Branco.
À nascença, fora registado como Mário Jorge
dos Santos Coelho.
Quando casou com uma talentosa cantora
lírica, manifestou vontade de adotar o apelido da nubente, tal como ela o
fizera reciprocamente. A finalidade era a de constituir a família Branco Coelho,
visto que a consorte tinha como último nome a alusão à cor do vestido que
envergava no matrimónio.
REGISTO CIVIL
O diabo é que, na Conservatória do Registo
Civil, entenderam que o magistrado passaria a chamar-se Mário Jorge dos Santos Coelho
Branco.
Imagine-se a confusão quando viesse o primeiro
filho. Os pais da criança seriam colocados diante da opção de lhe chamar Branco
Coelho, à semelhança da Mãe, ou Coelho Branco, como o progenitor masculino.
O jurista recém-casado não se conformou e
impugnou aquela decisão no Palácio da Justiça da capital. O colega do juízo
cível deu-lhe razão e decretou: o nome passa a ser Mário Jorge dos Santos
Branco Coelho.
O pior foi quando o processo subiu à
segunda instância e os juízes-desembargadores deliberaram em sentido contrário.
Se o código civil fala em acrescentar um apelido, tal significa colocá-lo
depois daqueles com que se viveu até dar o nó. O pobre autor do processo
lá voltou, infelizmente, a chamar-se Mário Jorge dos Santos Coelho Branco.
SINÉPICA
Interposto recurso para a catedral do
sistema judicial, fez-se justiça.
Invocando a doutrina do Professor Pereira
Coelho, mais um insigne homem de leis com sobrenome leporídeo, os conselheiros
do Supremo Tribunal explicaram que acrescento equivale a junção, podendo
concretizar-se em intercalação do apelido do cônjuge.
A sinépica, exercício nem sempre observado,
consiste em ponderar as consequências de uma certa decisão. E fora precisamente
isso que falhara na Relação.
Após este longo percurso, o juiz, que aqui
era parte no processo, ficou com o seu nome definitivamente fixado, tal como
pretendia: Mário Jorge dos Santos Branco Coelho.