quarta-feira

RECORDANDO GUILHERME DA PALMA CARLOS


 

Na obra “Se a Justiça Falasse…”, contei com a colaboração de prestigiados juristas, alguns dos quais já falecidos.

Guilherme da Palma Carlos integra-se nesses que já não estão entre nós.

Foi meu patrono no estágio de advocacia e gozei do enorme privilégio de muito aprender com ele no contacto diário que com ele mantive.




ADVOGADO

Aqui fica o capítulo respeitante a este grande Príncipe do Direito. Guilherme da Palma Carlos narrava curiosos casos com que se deparou na sua vida profissional.

Alguns relacionados com acidentes de viação, dada a sua vasta experiência enquanto advogado de companhias de seguros.

Um outro, interessantíssimo, de ofensa a Salazar, então Presidente do Conselho.

Para o final, guardou um episódio divertidíssimo.

Frequentemente, colocam-se dúvidas quanto ao pai de certa criança recém-nascida.

Em muitos casos, é instaurado um processo em tribunal: a ação de investigação de paternidade.

Hoje, as coisas estão simplificadas com os exames de ADN.

Eu nasci em 1966. Sou de um tempo em que o Professor Lesseps dos Reis ensinava, nas aulas de medicina legal, que as análises sanguíneas deixavam sempre um rasto de dúvida. E recordo-me de um juiz que dava mais valor à fisionomia do que aos relatórios médicos. Colocando lado a lado o menor e o pretenso progenitor, dizia: “Então não se está mesmo a ver que são pai e filho?”.

Pois Guilherme da Palma Carlos conta-nos, mesmo no final, um singular caso de investigação de paternidade bovina. Envolve algo de sedução ou violação de caráter animal.

Em pleno Ribatejo, a Companhia das Lezírias mantinha nobres vacas charolesas. Ali perto, encontravam-se toiros de lide pertencentes a Manuel dos Santos, então empresário do Campo Pequeno. Fêmeas e machos estavam bem separados. Mas a vedação foi derrubada. As consequências traduziram-se em vitelos. A paternidade era atribuída aos distintos toiros.

Vejamos pois o que nos relatou o distinto Advogado.




DA VELHA MEDALHA, O REVERSO

por Guilherme da Palma Carlos

Há muito tempo que germinava em mim a ideia de recordar algumas peripécias que me ocorreram ao longo de, valha-me Deus, quási cinquenta anos de advocacia de barra.

Isto irá bastante ao arrepio das tradicionais abordagens recordatórias, geralmente assentes nos asptos penosos ou glorificantes da nossa vida forense.

Normalmente, tendemos a invocar sacrifícios, incertezas, angustiantes esperas por incertas decisões, ambientes hostis, incidentes mais ou menos desagradáveis com magistrados ou colegas e outras situações análogas.

Foi nesta perspetiva que meu pai escreveu certo dia uma frase, hoje quási clássica, sobre os advogados:

“Seus momentos de triunfo são fugazes, vivem-se e logo se esquecem, pois não passam de relâmpagos a quebrar a escravidão duma constante luta”.

Não será essa a vertente que vou seguir. Pelo contrário, como contraponto inusitado, tentarei apenas recordar alguns aspetos mais risonhos a provar que, apesar dos pesares, a profissão tem o seu lado humorístico.

Desde muito cedo que a faceta risonha das coisas sérias me fascinou. E a minha idade já me permitirá a confissão de que me divertia mais a ler livros de cronistas judiciários franceses, que comentavam peripécias ocorridas nos juízos correcionais de Paris do que nos livros que bisonhamente descreviam idênticas situações no seu rigor judiciário. De todos havia na biblioteca de meu pai e a minha opção era claramente pouco científica.

Relembro livros de Geo London, como Quand la justice s’occupe de l’amour, Comédies e vaudevilles judiciaires e Mon Présidente, je vous le jure.

Dos livros de crónicas judiciárias, ilustradas, mordazes e até pedagógicas, recordo também o de Jules Moinaux, Les tribunaux comiques, relatando seis dezenas de audiências de pequenas causas criminais, fait divers mas todas eivadas de humor e utilizando o patois das classes menos eruditas de Paris dessa época.

Seria impossível resumir suas linhas gerais, tão diversas eram as situações, mas não posso deixar de aludir uma, de ofensas corporais entre dois indivíduos, mútua e reconvencionalmente queixosos, um Loupy, pobre e andrajoso, outro, Ducardon, mais rico e elegante, que apresentaram suas provas e razões contraditórias. Conclusão: Le Tribunal met fin a ces pennes, en condamnant Loupy et Ducardon chacun à 25 francs d’ammende.

 

Loupy- Vous v’la bien avance, Monsieur Ducardon.

Ducardon- Je m’en fiche, j’ai le moyen de payer, moi.

Loupy- Moi, je m’en fiche bien plus; j’ai pas le moyen.

 

Isto significa que a essências das velhas questões subsiste por resolver.

Forma e conteúdo, problemas esses que, porventura, estão na génese das reformas, a partir do social para o sistema e não vice-versa, visão que parece não ser a prioritária dos reformistas.

Estou, porém, a afastar-me do tema. Desculpem-me os meus infelizes leitores.



JUVENTUDE

Para situar a época que invoco, devo acrescentar outra insólita confissão. Na minha juventude universitária, e até depois, vivia-se na bem conhecida redoma repressiva de pudicícia e hipocrisia. Qualquer publicação mais ousada era de imediato proibida e sancionada. A coisa era tão rígida, que sem acesso às então bem pudicas revistas estrangeiras, tipo Playboy, logo apreendidas em qualquer circunstância para preservar a moral e os bons costumes, a leitura mais erótica a que havia acesso legal era A Vida Sexual, do Prof. Egas Moniz, editada pela década de 20, cuja 6ª edição, que tantas horas de pecaminosos e impuros pensamentos me permitiu, guardo religiosamente.

Foi ainda nesse clima autoritário que comecei a advogar.

E, feliz ou infelizmente, desde o início que a minha atividade era principalmente na barra, parte por ter sido a saudosa Companhia de Seguros Tagus, hoje AXA, a minha primeira cliente, depois seguida pela Tranquilidade, constituindo um ponto de orgulho a circunstância de ainda hoje continuar a exercer o respetivo patrocínio, quarenta e tal anos decorridos.

Nesse tempo, os então chamados “advogados de seguros” defendiam penalmente os próprios segurados, pois ainda não havia as ações “enxertadas”, que a pouco e pouco transformaram quási todos os acidentes em ações na alçada do Supremo Tribunal de Justiça, por obra da fantasia e criatividade de muitos dos lesados e do indiscriminado aproveitamento de um generoso, mas. nada seletivo apoio judiciário.

Isto permitia intenso contato com os tribunais correcionais onde se assistia à pulsão da sociedade de então, felizmente diversa da atualmente existente

Ora parte das historietas que recordo ocorreram nesse clima, bem mais solene e repressivo do que aquele que hoje existe nos tribunais, o que é preciso ter em conta, sem o que se perderá um pouco o apimentado de certas situações. Finalmente, acrescento que, tantos anos passados, não me é possível seguir a cronologia dos casos, pois recordo-os por si, mas não os consigo situar na sua relatividade temporal.



TEMPO

Comecei, aliás, o ofício de aprendiz de advogado de seguros duma forma bem movimentada. Com efeito, fui acompanhar meu tio Manuel João a um julgamento em que a parte contrária era representada pelo Dr. Ramada Curto. Como na época havia tempo para ter tempo, o Tribunal, representado pelo Dr. Garcia da Fonseca, resolveu deslocar-se ao local do atropelamento, ali para os lados de Santos, frente ao terraço da Embaixada de França. A vítima, uma peixeira típica, foi convidada a ocupar na faixa de rodagem o lugar em que estaria quando foi atropelada por um táxi. E assim fez. O pior é que nesse momento sobreveio outro táxi que por muito pouco não derrubou a contumaz ofendida que, furibunda, se foi embora proferindo genéricos e indiscriminados impropérios quanto aos operadores judiciários (horrível expressão) em geral e recusando-se a continuar presente na diligência.

Como se verá, foi auspicioso o meu início nesta matéria…

Outra vez, anos depois, estava a defender um taxista no 6º Juízo Correccional, sito nos soturnos corredores da zona térrea da Boa-Hora e sabia que o meu representado não tinha testemunhas (na altura podiam ser no próprio julgamento). Foi, pois, com surpresa que o oficial de diligências anunciou a presença duma testemunha do réu. Entrou, então, solenemente, na sala uma figura típica dessa época: cidadão de mais de meia idade, impecavelmente vestido com um jaquetão, completamente no fio mas de irrepreensível engomado, colarinhos rígidos, gravata saliente, enorme lenço de pontas gomadas, chapéu à diplomata, de abas viradas e luvas na mão. Aliás, cidadãos análogos eram frequentadores habituais das audiências. Mas aqui é que surge a bizarria: perguntei ao solene cavalheiro o que sabia ele do acidente ou do réu e então, perante o pasmo geral, a “testemunha” virou-se para o juiz, aliás magistrado solene e algo distante, o Dr. Correa Barreto e, com voz tunitruante declarou:

“Meritíssimo Juiz: este homem, sentado no banco da ignomínia, está inocente. E eu, de o ver ali, não posso conter a indignação e as lágrimas, repetindo – está inocente!”.

Nesta altura o Juiz interrompeu-o e convidou-o a sair, antes de maiores desastres, o que ele fez, saudando e retirando-se em passo digno, mas continuando, corredor fora, o seu discurso em alta voz. O magistrado, ainda perplexo, perguntou então ao acusado quem era aquela testemunha, ao que este respondeu, ainda mais perplexo, que não conhecia aquele senhor de parte alguma. O oficial de diligências, questionado sobre tão insólita aparição, contou que, no corredor, tinha perguntado se estava presente alguma testemunha do réu, e um senhor que ia passar, ao ouvir a pergunta e logo declarou “Testemunha? Sou eu!”, posto que avançou como ficou referido.



ATROPELAMENTO

Uma outra vez defendi um condutor realmente dotado para ter problemas. O caso era simples: tinha atropelado um cidadão de etnia cigana (como agora se diz) em frente ao antigo campo de futebol da fábrica de loiças de Sacavém, que constituía ao tempo o itinerário Lisboa-Porto. O atropelamento foi ligeiro, mas uma horda de companheiros da vítima irrompeu pela estrada e o infeliz condutor teve de correr à frente deles, do local do acidente até ao antigo posto da Polícia de Viação e Trânsito em Sacavém. Disto resultou que o atropelador, abalado com o susto, acabou por ter um período de doença superior ao do atropelado. Mas não se ficou por aqui: no julgamento, o Juiz Alves Pinto, perguntou-lhe se já tinha respondido anteriormente por crime e ele responde que apenas estivera uma vez no tribunal que localizou no Porto, e que correspondia aos juízos cíveis. Ficou, assim, exarada resposta negativa, mas quando veio a certidão, constava um processo, o que lhe valeu nova acusação por falsas declarações. Verificou-se, entretanto, que houvera uma curta época em que os juízos correccionais do Porto estiveram temporariamente instalados nos locais do cível por força de obras. O que lhe valeu foi que o Dr. Alves Pinto se recordava do caso e ofereceu-se, honra lhe seja, para testemunhar, juntamente comigo, que não houvera falsas declarações, mas inexacta interpretação do que dissera. Só nisso o cidadão acabou por ter sorte…



PEÃO

Em Setúbal, com o inesquecível Juiz Dr. Pinheiro Farinha, rigoroso e formal, defendi outro condutor que tinha atropelado um peão, nas loucuras das festas de Santiago. O estranho é que o peão atravessava a rua, acompanhado de dois outros, que nada sofreram, um dos quais era cego.

Este último apareceu arrolado como testemunha de acusação e, quando foi ouvido, enviei ao delegado, meu amigo e colega de curso, o saudoso João António Leitão Ribeiro Tristão, um bilhete discreto com a seguinte quadra:

“Torpíssimo Acusador

Nesta causa que renego,

De testemunha de vista

Até me trazes um cego!”

Eu dava-me muito bem com o saudoso Dr. Pinheiro Farinha, mas conhecendo-lhe o temperamento, por vezes imprevisível, fiquei um tanto aterrado quando o João Leitão, com ar impávido, remeteu a minha nota para o juiz. O que então aconteceu, sempre com a maior pompa e circunstância, foi o Dr. Pinheiro Farinha se me dirigir: “Queira V. Exª esclarecer se está em causa uma contradita à testemunha”. Ao que respondi, solene, que de forma alguma, prosseguindo o julgamento sem que ninguém, dos de fora se tivesse apercebido deste interlúdio.

Que saudades dos Magistrados dos meus verdes anos, alguns dos quais só encontro em cerimónias no Supremo Tribunal de Justiça! E de outros que, infelizmente, já não poderei tornar a encontrar…





INJÚRIA

Já vai longa esta prosa… Por isso, só descrevo mais um caso, este ocorrido no velho Tribunal de Sintra, mourisco e turístico. Antes do julgamento que ali me levara, havia um outro em que o réu era acusado de injúrias ao então Presidente do Conselho, Dr. Oliveira Salazar. Acusação grave, na época. Segundo os autos, o réu entrara na sede da Associação dos Ferroviários da Linha de Sintra, em Mem Martins, onde a televisão emitia um dos raros discursos do Chefe do Governo. Da acusação constava que ele teria então dito, em alta voz, “estás aí, meu bandido”, ou coisa semelhante. Saíra e passado pouco tempo, regressaria dizendo “ainda aí estás, meu bandido?”. Estas expressões tinham impressionado o denunciante, evidentemente informador da PIDE, que se apressou a participar tão nefanda actuação, que teria de ser apreciada em juízo.

O Juiz Dr. Barros Sequeira, como quem me dava muito bem e veio depois a ser Chefe de Gabinete de meu Pai na sua efémera passagem pela Presidência do 1º Governo Provisório, ao ver-me na sala disse que eu seria o indicado para a defesa oficiosa do réu. E o julgamento não poderia ter corrido melhor. Aconselhei-o a manter-se em silêncio e interroguei o denunciante, que era a peça chave duma acusação que incomodava toda a gente. Limitei-me a perguntar-lhe se havia muitos espectadores na sala da televisão, ao que respondeu que sim. Depois, se o réu tinha pessoalizado o destinatário das frases. Respondeu que dissera apenas o que constava dos autos. Então, conclui, sofisticamente, que quem injuriava o senhor Presidente do Conselho era ele próprio, uma vez que entendia que uma expressão não direccionada e proferida na presença de uma pluralidade de pessoas só podia ter em vista o Dr. Oliveira Salazar.

O Ministério Público e o Juiz inseriram-se nesta argumentação, que obtinha um manifesto apoio de todos os circunstantes e o réu, algo atónito, saiu gloriosamente absolvido, enquanto que o denunciante se perguntaria, provavelmente, se o seu insucesso como “bufo” não viria a ser-lhe penalizante.



GÔNDOLA

Não devo tornar mais longo este texto que, provavelmente, só interessará a mim próprio, desculpem os hipotéticos leitores. Claro que houve muitos outros casos, desde chegar, num dia de cheias, ao Tribunal da Golegã em barco a remos, tipo gôndola, para passar o submerso “Dique dos Doze”, com um oficial de diligências, no outro lado, à minha espera no seu carro. Outro, em que num acidente de trabalho in itinire, por alegada negligência da vítima ao transitar pela via férrea, tive um comboio por testemunha, uma vez que apitou com a antecedência que eu invocara ser norma e destruiu assim a tese do aparecimento súbito e inesperado. Também uma vez houve uma troca de duas pastas, então na moda, estilo James Bond, e levei a de um agrónomo, em vez da minha, tendo de referir ao tribunal que sobre os autos pouco poderia dizer, pois não tinha o processo. Porém, estaria em condições de dissertar sobre a genética das vacas de raça charoleza, uma vez que na pasta que levara por engano havia um tratado sobre tal matéria.



AVENTURA

E já agora, uma vez que estou a falar de vacas, recordo um processo insólito em que representei a Companhia das Lezírias, que se tornou um misto de inquérito cível sobre hipóteses de violação, sedução e investigações de paternidade. Foi o caso de estarem em parcelas vedadas da lezíria, separadas por vedações, nobres vacas charolezas e toiros de lide do saudoso matador Manuel dos Santos, ao tempo empresário da Praça do Campo Pequeno.

Por força de alguma insídia sentimental ou de apelo da natureza, o certo é que a vedação foi derrubada e alguns toiros e vacas entregaram-se a ilícitos devaneios, dos quais resultaram alguns estranhos bastardos. Ao Tribunal de Vila Franca foi cometida a ciclópica tarefa de averiguar quem seduzira quem e dos danos decorridos nas estirpes profanadas, o que, como era previsível, excedeu a capacidade investigatória da Justiça.



BOLACHAS

Um outro caso invulgar que tive correspondeu a um julgamento de um banal choque de camiões na área de Castelo Branco. Isto nada teria de invulgar, mas o que tornou inesquecível o caso foram duas circunstâncias cumulativas. A primeira resultou de ter havido a nacionalização e agrupamento das seguradoras, do que resultou eu estar a representar ao mesmo tempo a autora e a ré. A segunda foi ter-se constatado que os danos sofridos no veículo transportador de um carregamento de bolachas tinham sido inferiores aos do próprio carregamento, já que durante a noite estas foram repartidas por alguém que ali passou – e se serviu…



EQUIPA

Podia ainda relembrar, com mais pormenor um julgamento no Tribunal Plenário, o primeiro na Primavera Marcelista, cheio de expectativas e de tensões, em que o meu sempre saudoso Amigo António Carqueijeiro pediu ao Desembargador Presidente para, no autorizado interrogatório directo aos seus representados, manter o tratamento por tu que era o habitual, uma vez que companheiros da equipa de rugby de Direito, privilégio esse que logo aproveitei, face ao precedente, uma vez que o Juiz, atónito com o pedido, o deferiu sem ponderar a pública cumplicidade que assim se estabeleceu. Foi um momento bonito, que aliás chocou o então Bastonário, que me disse que tal atitude lhe parecia inadequada, tendo-lhe respondido que, pelo contrário e dada a natureza política do processo, tinha sido uma postura com muita importância desmistificadora e dessacralizadora.

 

In Helder Fráguas, Se a Justiça Falasse…, Lisboa, 2004