terça-feira

O MARTELO DO JUIZ


É interessante o livro “Histórias de Polícias e Ladrões”, da autoria de João Branco, que serviu a Polícia Judiciária ao longo de 34 anos.

A linguagem utilizada na obra inclui a curiosa gíria de marginais. Os respetivos vocábulos acabam por ser também empregues pelos elementos policiais quando se referem aos criminosos com quem lidam. É impressionante a quantidade de sinónimos ou expressões equivalentes para falar em dinheiro: massa, guito, arame, pilim, carcanhol ou pasta, por exemplo.

O polícia aposentado decidiu contar alguns dos casos com que se deparou. Assegura que os acontecimentos são “relatados de forma a reproduzirem com fidelidade a realidade dos factos”. Diz mesmo: “tudo aquilo que escrevi corresponde ao que se passou até ao mais ínfimo pormenor”.


JULGAMENTO

Naturalmente, algumas inexatidões poderão ser retificadas numa próxima edição. Surgem sobretudo a propósito das audiências de julgamento. Estas fazem parte do mundo judiciário, que, compreensivelmente, o autor não conhece tão bem como o da realidade policial.

Conta João Branco que foi chamado a depor como testemunha no Tribunal de Benavente. Gerara-se algum ruído no decurso da audiência de julgamento. Então, afirma o autor do livro, “o juiz presidente mandou calar a assistência batendo várias vezes com o martelo na mesa”.

É claro que isso não aconteceu.

Contrariamente ao que se poderia supor, os juízes não utilizam martelos. Apenas os usam na cervejaria, para descascar sapateira.


CORRUPÇÃO

É especialmente curiosa a alusão a uma situação ocorrida em 1989.

Fica-se com a clara ideia de que era pouco incisivo o combate à corrupção. De um modo geral, era fraca a repressão dos crimes cometidos no exercício de funções públicas e que atentam contra o Estado de Direito.

Por essa altura, eu assisti a uma conferência em que um juiz, já com décadas de exercício das suas funções, admitia que nunca lhe tinha passado pelas mãos um processo de alguém acusado de ser corrupto.

Criminosos eram os homicidas, os ladrões, os terroristas, os burlões, os violadores ou os traficantes.

Mesmo sendo patentes casos de corrupção ou tráfico de influência, raramente conduziam a um processo judicial.



DA ALEMANHA PARA O LÍBANO

Aquele episódio, narrado pelo antigo polícia, consistiu no seguinte.

Na Alemanha, um bando especializava-se em roubar veículos BMW da série 5. O destino final era o Líbano.

Começaram por embarcá-los na Bélgica, mas o controlo era apertado e difícil de contornar.

Encontraram na capital portuguesa quem os ajudasse. Em Lisboa, um funcionário da Delegação Aduaneira de Alcântara estava ao dispor.

Os carros eram conduzidos até à capital portuguesa e arrumados nos mais variados locais públicos, onde o estacionamento não fosse pago. Estávamos no tempo em que o estacionamento no aeroporto da Portela era gratuito. Esse era, portanto, um dos locais de eleição.

Enquanto a documentação era tratada e o contentor não era facultado, os automóveis ali permaneciam.


TRANCA

Eles eram gatunos, mas não queriam transformar-se em vítimas. Para evitar o perdão aplicado ao ladrão que rouba a ladrão, utilizavam um dispositivo em voga à época. Tratava-se de uma tranca que prendia o volante a um dos pedais. Por vezes, era designada como “bengala”, barra anti-roubo ou bloqueador. O guiador ficava imobilizado e a embraiagem sem possibilidade de ser utilizada.

Para dissuadir potenciais amigos do alheio, o aparelho era bem visível do exterior, ostentando cores garridas. Quem se interessasse pela viatura já sabia que ia ter trabalho adicional a remover o equipamento. Talvez optasse por outro carro mais fácil de levar.

A questão é que os germânicos usavam sempre as mesmas trancas, todas elas cor-de-laranja, de fabrico espanhol.

Para a Polícia Judiciária portuguesa, a missão ficou facilitada. Bastava procurar os veículos daquele modelo com matrícula alemã. Verificando-se que ostentavam um dispositivo anti-roubo com aquelas características, era quase certo ser uma viatura pertencente ao lote das furtadas no país reunificado em 1990.


ALFÂNDEGA

Detidas as pessoas que conduziam as viaturas, facilmente se chegou aos processos alfandegários que desembaraçavam os carros com destino ao país onde seriam acolhidos.

No dossiers necessários ao embarque dos carros a exportar, constava uma cópia do passaporte do proprietário. Pois entre a documentação dos veículos furtados na Alemanha, esse elemento estava sempre ausente. Era por demais evidente a preciosa colaboração do funcionário público luso, “fechando os olhos e nada questionando”, como diz o antigo elemento policial.

A verdade é que nada aconteceu ao empregado da alfândega.

No fundo, também a polícia e o Ministério Público viram-se na posição de ter de fechar os olhos.

Com os meios atuais, tal seria impensável. Mobilizam-se as ferramentas que permitem responsabilizar o corrupto. Vigilâncias, escutas telefónicas, análise de contas bancárias, localização celular, apreensão de telemóveis, imagens de videovigilância e acesso a mensagens escritas: tudo serve para que não apenas a arraia-miúda pague pelos crimes cometidos.