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COMO NASCE UM TRIBUNAL



Aqui há uns tempos, referi-me ao tribunal de Monsanto, em Lisboa. Decidem-se aí os casos mais importantes que possam implicar pena de prisão superior a cinco anos.
Em princípio, o julgamento desses processos deve ter lugar no velho Tribunal da Boa Hora.
Quando o número de arguidos ou testemunhas é elevado, utilizam-se as instalações de Monsanto.
Foram criadas em 1985 e têm servido para megajulgamentos.
Nessa altura, houve que proceder ao julgamento do caso FP 25.
Tornava-se claro que a Boa Hora não reunia as condições para o efeito.



UM PROCESSO MONSTRUOSO

Eram muitos os arguidos, imensas as testemunhas e as necessidades de segurança eram evidentes. Estava em causa o julgamento de uma organização que reivindicara uma série de atentados e homicídios.
O primeiro pensamento foi o que vingou: vai-se criar um edifício novo, com os meios adequados. Eram necessárias celas, estacionamento para as carrinhas celulares bem como uma área para testemunhas, jornalistas e público. Na sala de audiências, haveria um sistema sonoro. Os arguidos estariam devidamente isolados.
Mas logo levantou-se um problema. O principal réu era Otelo Saraiva de Carvalho. Importava não transmitir a ideia de que se tratava de um julgamento especial, de carácter político. O que estava em causa era julgar uma associação de malfeitores. Eles eram acusados de crimes muito graves, bárbaros e cruéis: assaltos, raptos, atentados bombistas e assassínios.
Na altura, ainda havia quem considerasse Otelo como um herói. Ele candidatara-se à presidência da república em 1976 e 1980. Obteve um número insignificante de votos. Mas ainda era encarado por alguns como tendo protagonismo político.
Daí que o problema fosse levantado. O julgamento tinha de ser realizado num tribunal já existente, de carácter comum. Para não passar o sentimento de que era um caso de excepção, com contornos políticos.
A única solução era utilizar o enorme Palácio da Justiça, junto à Penitenciária. Ali decidem-se sobretudo os litígios entre particulares, ou sejam, os processos cíveis. Também se realizam julgamentos de crimes menores: condução sem carta, agressões, insultos e condução em estado de embriaguez.


COLDRE

Portanto, estava tudo preparado para que o julgamento das FP 25 se fizesse no Palácio da Justiça. Proceder-se-ia a algumas adaptações, com vista a tornar o local mais seguro.
Mas um juiz que ali prestava serviço não gostou da ideia.
A serena Casa da Justiça ia transformar-se no grande centro de atenções. Polícias, jornalistas, testemunhas protegidas, magistrados rodeados de medidas de segurança, advogados, carrinhas celulares: era demais!
O tal juiz disse logo o que faria. Passaria a deslocar-se para o local de trabalho com uma pistola no coldre.
Os juízes não necessitam de licença de uso e porte de arma de defesa. Alguns optam por transportá-la consigo, mas dissimulam-na. Não costumam usá-la à cintura, como se fossem polícias.
Foi então que se teve de voltar à ideia inicial.
Não se podia criar demasiada instabilidade no Palácio da Justiça.
O melhor era mesmo construir um tribunal de raiz para as FP 25. Depois, seria utilizado para outros megajulgamentos.
O resto é história.
Em 1996, a Assembleia da República amnistiou os delitos das FP 25, com excepção dos crimes de sangue.Quanto a estes últimos, foi tudo decidido posteriormente na Boa Hora. A esse propósito, afirmou Miguel Sousa Tavares: “só faltava mesmo isto, que um tribunal nos viesse dizer que Otelo e os seus comparsas não eram as FP-25”.