segunda-feira

QUE ESQUISITO


Existem leis mesmo estúpidas.
Referi um caso. Muitas outras situações poderiam ser mencionadas.
Diz-se que raramente os juízes portugueses optam por condenar o arguido a trabalho a favor da comunidade. Preferem aplicar multas ou mandar as pessoas para a prisão.
Não sei se isso será bem assim.
Eu tenho feito alguma utilização dessa faculdade. Quem acompanhou a minha actividade no Tribunal de Almeirim, sabe disso. Sempre houve receptividade da respectiva Câmara Municipal, com destaque para o seu Presidente. Certa vez, fiz uma maldadezinha, sem querer.
Uma senhora, dotada de curiosa alcunha, foi apanhada a conduzir sem carta de condução. Teve um acidente e fugiu antes que chegasse a GNR. Mas ela era suficientemente conhecida. Havia várias testemunhas.
Condenei-a a trabalhar durante 60 horas. Mediante ofício, solicitei a colaboração da Câmara, para que ela prestasse ali as suas funções. Nesse mesmo dia, fui aos Paços do Concelho. Disseram-me:
- Arranjou-nos a bonita, Senhor Dr. Juiz! Essa senhora já cá esteve a trabalhar, enviada pelo Centro de Emprego. Só criava conflitos. É uma pessoa complicadíssima. Ela deve dar uma bela ajuda, com o seu brilhante trabalho...
Mesmo assim, o Dr. José Sousa Gomes deu mostras do seu humanismo e dedicação à terra. Aceitou a senhora, atribuindo-lhe um trabalho adequado.
Evitou-se que ela fosse para a prisão.


TRABALHO

A esquisitice é a seguinte.
O trabalho a favor da comunidade pode servir para substituir uma pena de prisão ou o pagamento de uma pena de multa.
Em casos menos graves, o juiz apenas aplica uma multa, sobretudo quando o arguido é primário. Ou seja, quando não tem antecedentes criminais.
O condenado pode solicitar que em vez de pagar a multa ofereça a força do seu trabalho.
Está tudo previsto no Código Penal.
Claro que o juiz não pode mandar a pessoa trabalhar para qualquer sítio. Não pode dizer ao arguido para ir construir um canil na sua casa. Em princípio, trabalhará para um organismo público ou uma entidade privada com finalidades de interesse para a comunidade.
O juiz deve então diligenciar por encontrar uma instituição que aceite o trabalho do condenado.
Dessa matéria trata uma outra lei: o Código de Processo Penal.
Há uma clara incompatibilidade entre os dois diplomas em causa.



FALTA DE VONTADE

Quando se trata de substituir uma pena de prisão, não há dúvidas. O trabalho não é remunerado.
Mas no caso de isentar o arguido da multa em troca de trabalho, o Código de Processo Penal diz que o juiz deve inteirar-se do local de trabalho e da respectiva remuneração.
Que sentido é que isto faz?
A pessoa é condenada a pagar uma multa. Pode ir desde dez euros até quase trinta mil euros.
O juiz permite que a multa não seja paga e que seja prestado trabalho. Portanto, há uma compensação: o não pagamento da multa.
É um contrasenso estar a dispensar o criminoso de pagar a multa e ainda por cima dar-lhe dinheiro. É absurdo arranjar emprego pago a delinquentes que não satisfazem as multas.
O trabalho a favor da comunidade só pode ser decretado se o arguido der autorização. No âmbito da Organização Internacional do Trabalho, Portugal assinou uma convenção que proíbe trabalhos forçados.
Já tive dois casos em que os arguidos disseram não querer trabalhar. Disseram estar desempregados. Quando lhes propus prestarem o seu trabalho, afirmaram que preferiam pagar a multa.
Lá deviam ter a sua fonte de rendimento, com dinheiro obtido facilmente e sem impostos.