quinta-feira
GRANDES VIDAS
“Quando sair vou querer a minha vidinha. Bons estudos, altos carros, que eu só curto BMs, iá de alto BM, as damas todas a pararem só para me verem, e eu todo pintas, todo doutor”.
Assim fala um adolescente num centro reeducativo, quando entrevistado pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht. O médico não tem dúvidas: o discurso é próprio de uma idealização maníaca.
O caso encontra-se relatado no livro “À margem do amor”, da autoria deste clínico.
Chama ele a atenção para a necessidade de distinguir este tipo de defesas grandiosas com mentiras ou manipulações. A pessoa acredita piamente naquilo que afirma.
Casos destes encontram-se também entre adultos criminosos.
Muitas vezes, esse comportamento manifesta-se através da sensação de que não há provas que possam incriminar o arguido.
O traficante garante que não deitou a droga pela janela fora quando se apercebeu de que a polícia iria efectuar uma busca em sua casa. É condenado porque o juiz conclui que o produto estupefaciente encontrado na rua lhe pertencia a ele. O arguido recusa-se a compreender aquela punição. Para ele, não faz qualquer sentido.
As buscas em casa de traficantes são levadas a cabo de manhã, ao nascer do sol. Nunca se podem efectuar à noite, por imposição legal. Os tempos em que a polícia entrava nas residências durante as horas de descanso são de má memória.
Pelo menos dois agentes sobem ao apartamento do suspeito. Os restantes ficam atentos a todas as janelas. Se as houver nas traseiras, para lá se deslocarão.
Sucede muitas vezes ser atirado algo pela janela fora. Normalmente, é droga.
O traficante fica descansado. Em casa, não lhe encontram nada. Se vierem a descobrir alguma coisa na rua, o estupefaciente tanto podia ser dele como de outro qualquer. Mesmo que alguém tenha visto o produto a cair no chão, nunca poderá dizer de que janela foi o mesmo atirado.
Na realidade, as coisas não se passam assim. As buscas, nestes casos, são realizadas com todos os cuidados.
Se em casa do suspeito são localizados objectos relacionados com o tráfico, torna-se praticamente certo que a droga caída veio da casa dele. Depois, há sempre um ou mais agentes policiais que presenciaram tudo.
Em caso de revistas pessoais, em locais públicos, também por vezes ocorre algo de semelhante. Nas rusgas, as pessoas comprometidas atiram, para o chão, as drogas ou as armas proibidas. Na gíria, “desmarca-se” o objecto. Uma vez encontrado no chão, não há marca da sua propriedade.
Quando as pessoas envolvidas são muitas e os polícias poucos, pode acontecer um desses objectos desmarcados ficar por ali perdido. Alguém, por sorte, poderá apropriar-se do mesmo.
Mas, sobretudo no caso de armas, também é frequente virem os arguidos dizer que as acharam nessas circunstâncias. Não querem comprometer o vendedor da arma. Dão aquela explicação: “encontrei-o no chão. Tinha sido desmarcada por alguém quando a polícia lá esteve”. Aí é que por mais que se queira, não há solução. Não se pode insistir.
Uma nota final. Um leitor de Almeirim escreveu-me, mandando um simpático e-mail. Descreve uma actualização no caso da bicicleta roubada, que eu relatei há duas semanas atrás.
Começa tudo com um pequeno crime e as coisas vão evoluindo de drama em drama, até à tragédia final.
A bicicleta tinha sido roubada.
Um homem armou-se em detective e pensou que tinha descoberto o autor do crime. Apontou-lhe uma caçadeira e queria obrigá-lo a entregar o velocípede. O pior é que o desgraçado não tinha roubado nada e ficou cheio de medo. Desatou a fugir e foi atingido nas costas. Ia morrendo.
O autor dos disparos foi condenado a pena de prisão efectiva e acabou por se meter em sarilhos.
Recentemente, este aprendiz de detective perdeu a vida num acidente de viação.