quinta-feira

UM NATAL MARAVILHOSO




A última vez que lá tinha estado foi em 1990. Durante cinco anos, eu almoçava regularmente na cantina da Cidade Universitária, a dois passos da Faculdade de Direito de Lisboa.
Regressei lá em Dezembro de 2004.
Celebrava-se o Natal com os sem abrigo, organizado pela Comunidade Vida e Paz. Ofereci-me como voluntário e ali estive a dar o meu modesto contributo, entre centenas de pessoas.
A obra levada a cabo por esta instituição é de enorme relevo.
Todos os dias, são fornecidas refeições aos sem abrigo, através de equipas que se deslocam em carrinhas apropriadas. Com os alimentos, são dadas palavras de esperança e escuta-se o que há para ouvir.
A Comunidade dispõe de três centros de recuperação.



ROUPA

Foi um encontro natalício muito bonito.
Ainda as portas da cantina não abriram e já se reúnem ali algumas centenas de pessoas que dormem nas ruas da Capital. Há mulheres de idade sozinhas, a maior parte nascidas fora de Lisboa e que se encontram desamparadas. Jovens toxicodependentes também ali aguardam. Imigrantes de Leste buscam conforto.
Abrem-se as portas e começo a contactar com alguns deles.
Falo com a Conceição, que diz ter idade para ser minha mãe. Com algum esforço, porque a nossa diferença de idades é de dezasseis anos. Mas aquela atitude revela a sua postura: considera-se velha.
Não trabalha e vai sobrevivendo de algumas esmolas.
Dou-lhe um saco com o lanche, para consumir até à hora do jantar.
Acompanho-a ao centro de recolha de roupa, onde ela explica o que mais desejaria ter. Leva três peças.
O Jorge traduz claramente um caso de toxicologia. Conseguimos falar a mesma linguagem. Eu estou habituado ao calão respectivo.
Tem 27 anos, mas aparenta 45.
Aos doze, começou a consumir heroína. Um ano depois, foi-lhe revelado que tinha SIDA. Estava em Leiria, num centro de reeducação.
Passou pela cadeia de Custóias.
Inicialmente, diz-me que vive do que lhe dão enquanto arrumador de carros, num jardim rodeado de bares. São seis homens os que lá vivem e se encarregam dos estacionamentos.
Quanto a drogas, diz já as ter deixado. Consome apenas álcool. Começa pelo bagaço ao levantar e continua com vinho tinto ao longo do dia. Não consegue viver sem a bebida. Mas diz que no início do ano, vai iniciar um tratamento.
Pergunto-lhe sobre as condições em que dorme.
Ele mostra-se preocupado com o local onde guarda os seus pertences.
Tem medo que lhos roubem. Mas roubem o quê?
Admite que vende haxixe. Compra um “sabonete” por semana. O “sabonete” é um pedaço de haxixe do tamanho desse objecto de higiene.



SEIS TIROS

Carlos tem 33 anos. Está embriagadíssimo. Cambaleia. Ri por tudo e por nada. Quer cumprimentar todas as senhoras, com dois beijinhos.
Diz que amanhã vai morrer. Pergunto-lhe o que o leva a afirmar isso e ele explica-me que se vai suicidar. Peço-lhe esclarecimentos sobre o modo como vai fazê-lo e a resposta é que vai ser com seis tiros. Seria um caso curioso. Uma pessoa conseguir alojar todas essas balas na própria cabeça! Quando o questiono se já possui a arma, diz que não.
Encaminho o Carlos para uma psicóloga.