quinta-feira
UM PRESO ESPECIAL
Sempre houve presos de confiança. Mesmo antes de existir o regime aberto aplicado aos reclusos que oferecem pouco perigo de fuga.
Faltavam oito meses para ele sair da cadeia. Ele já estava a beneficiar de um tratamento especial e deslocava-se à vontade pelo estabelecimento prisional. Trabalhava na recolha de roupa suja, que era encaminhada para uma lavandaria.
Outros dois detidos aproveitaram-se do seu carácter influenciável. Um deles estava a cumprir vinte anos de prisão. Fora meu colega na escola secundária e não era mau aluno. Embora tivesse reprovado no 9º ano, havia quem explicasse tal insucesso a problemas familiares. Era inteligente, na verdade. Tanto que, em conjunto com outro homicida, convenceu o tal preso de confiança a aderir a um plano de fuga.
O poder de persuasão era evidente, pois fugir a oito meses da libertação não lembraria a muitos.
Quando a carrinha da lavandaria estacionou no pátio da prisão, o preso de confiança carregou para o seu interior a roupa para lavar. Quando ninguém estava a olhar, meteu-se lá dentro em conjunto com os outros dois.
Os que cumpriam longas penas nunca mais foram capturados.
O outro voltou pouco tempo depois à prisão para cumprir o que lhe restava e mais algum pela fuga.
É um caso pouco frequente. De um modo geral, os reclusos que beneficiam de maior confiança não se evadem.
Já deram provas de bom comportamento. Normalmente, falta pouco tempo para a libertação. Não faria sentido permanecerem em fuga.
O escritor Rentes de Carvalho cursou Direito, mas não terminou os estudos. Interessa-se, porém, por estas matérias.
Relata ele um caso verídico ocorrido nos anos 40 do século passado.
Havia uma certa complacência relativamente aos crimes passionais. Os juízes, os carcereiros e a própria comunidade encaravam esse tipo de criminoso com alguma tolerância.
Numa pequena cidade, começara a erguer-se um novo estabelecimento prisional.
O Senhor Almeida, empregado bancário, de boa reputação, estava longe de imaginar que iria estreá-la.
Tinha casado recentemente e era pai de uma linda menina.
No entanto, chegou-lhe aos ouvidos aquilo que já toda a gente sabia. O tenente Norberto passava lá por casa quase todos os dias, onde era acolhido pela mulher.
Ele confirmou com os seus próprios olhos, mas sem que os amantes se apercebessem.
De início, nem abordou a questão com a esposa.
Mantinha relações sexuais com ela, mas deixava sempre na mesa de cabeceira uma nota de vinte escudos, o montante normalmente pago às meretrizes.
A mulher estranhava, mas ele recusava-se a explicar porque procedia assim.
Da terceira vez, ela recusou a cópula, exigindo que o marido esclarecesse a questão.
Foi então que ele se tornou muito agressivo e matou-a à pancada.
O julgamento teve muita assistência. O irmão da falecida não se conteve e gritou “assassino!”, tendo sido de imediato afastado da sala.
O juiz condenou-o a dez anos de cadeia, pena pouco severa.
A nova prisão ainda não se encontrava concluída. A velha cadeia situava-se num edifício medieval com celas enormes, onde muitos presos sobreviviam em condições muito difíceis. Foi o próprio juiz que providenciou que o Senhor Almeida recolhesse ao hospital enquanto o estabelecimento em construção não fosse inaugurado.
Ainda antes dessa data, já ele lá ia. Deixava o hospital a horas de menor movimento, por forma a ir fazendo a contabilidade do estabelecimento prisional.
Quando a prisão entrou em funcionamento, foi autorizado a guardar consigo as chaves.
Em vez de uma cela, foi-lhe atribuído um quarto.
Saía e entrava discretamente.