sexta-feira

O VENCEDOR




As votações são sempre um tema fascinante para um jurista.
Logo no primeiro ano da Faculdade, estudam-se os sistemas eleitorais.
Tradicionalmente, em Lisboa, a matéria é ensinada pelo Professor Jorge Miranda. Em Coimbra, por Gomes Canotilho.
Invariavelmente, desperta especial interesse. É um assunto com imediata aplicação prática.
Portanto, foi com particular prazer que, durante alguns dias, presidi à Assembleia de Apuramento, na minha comarca.
É sempre dirigida por um juiz.
Compete-lhe distribuir os mandatos e proceder à publicação oficial dos resultados eleitorais no Diário da República.
Em caso de haver impugnações, a Assembleia decide sobre as mesmas.
Na quarta feira, dia 12 de Outubro, ao fim do dia, dei os trabalhos por encerrados.
Agora, já só voltará a haver autárquicas daqui a quatro anos.
Mas, em breve, teremos as presidenciais.
Várias pessoas me têm colocado questões sobre a lógica eleitoral. Sobretudo no que toca aos candidatos de esquerda, que dizem que estão a contribuir para derrotar um outro.
Obviamente, não me compete estar a dizer o que me parece bem ou mal, de acordo com as minhas convicções. Essas são pessoais e não as revelo.
No entanto, posso adiantar como se passam as coisas, no quadro de um raciocínio hipotético.
Suponhamos que estamos num país onde vigoram eleições directas para o Presidente da República.
O sufrágio é universal e directo. Quer dizer: todos têm um voto, desde que maiores de dezoito anos.
O sistema é de duas voltas. Na primeira votação, se houver um candidato com, pelo menos, metade dos votos mais um, então é logo eleito.
Caso contrário, procede-se a uma segunda volta, em que participam apenas os dois candidatos mais bem classificados.
Apenas os votos validamente expressos contam. Os brancos e nulos não relevam.
Agora imaginemos que existe apenas um candidato.
É uma personalidade de prestígio, muito competente. Durante dez anos, desempenhou funções de primeiro-ministro.
Se for sozinho às eleições, terá cem por cento dos votos.
Mesmo que pouca gente se dê ao trabalho de ir às urnas, todos os votos válidos serão a favor dele. Não há outra hipótese.
Portanto, ganha à primeira volta.
Mas suponha-se que surge outro candidato para disputar, com este, as eleições.
É um indivíduo que goza de imensa popularidade e de um inegável carisma.
Já foi Chefe de Estado durante dois mandatos.
Então, já o primeiro não atingirá a plenitude dos votos.
Digamos que A fica com 65% e B com 35%.
Eis senão quando, inesperadamente, é anunciada uma alegre candidatura da área do candidato B, situada mais à esquerda.
Quem a protagoniza é um deputado, escritor e homem marcadamente de esquerda.
Várias pessoas vão sair de casa, naquele domingo, propositadamente para tentar eleger C. São pessoas que não iriam votar em nenhum dos outros dois, mas que se dispõem agora a ir às urnas.
Evidentemente, alguns irão deixar de votar em B. Haverá um certo desvio de votos.
Portanto, as percentagens passarão a ser as seguintes. B- 33%, C – 16%, A – 51%.
Este último mantém o mesmo número de votos. Mas como há mais eleitores, a proporção vai diminuindo.
Vamos, neste momento, considerar uma outra candidatura, que já tinha sido anunciada.
Trata-se de um esquerdista, que cativa uma certa franja da sociedade. É um irreverente deputado de um partido minúsculo, que tem vindo a registar uma crescente adesão.
Certamente, esta candidatura de D vai contribuir para que alguns já não votem no antigo presidente ou no deputado escritor.
Mas também consegue captar novos eleitores. Pessoas que ocupariam o seu domingo de outra forma. Mas que, sendo assim, irão votar nele.
Deste modo, teremos os votos assim distribuídos. D – 10%, C – 15%, B – 30%, A – 45%.
Nesta última possibilidade, A já não consegue a vitória à primeira volta.
Terá de se realizar um segundo sufrágio entre os dois candidatos que obtiveram maior número de votos na primeira volta.
Daqui retiram-se algumas conclusões.
Como já se afirmou, A obtém sempre o mesmo número de votos. Verdadeiramente, no eleitorado dele, não há indivíduos que se deixem impressionar pelas outras candidaturas.
Mas quantos mais candidatos vão surgindo à esquerda, maior é o número de votantes. É que há mais e mais eleitores que se dispõem a sair de casa e confiar o seu voto num desses que vai aparecendo. O nível de abstenção diminui.
Por conseguinte, as probabilidades de A ser eleito à primeira volta vão diminuindo.
Ora B só terá chances de ganhar se houver duas voltas.
Assim, revela-se algo de curioso.
Quanto maior for o número de candidaturas, mais beneficiado fica ele.
Isso compreende-se com facilidade.
Havendo apenas dois candidatos, a eleição decide-se sempre à primeira volta. Forçosamente, um dos candidatos fica com mais de metade dos votos.
Se houver muitos concorrentes, os votos dispersam-se, aumentando o número de votantes.
Somente num caso, B só sairia prejudicado com o aparecimento de novas candidaturas de esquerda.
Tal aconteceria se surgisse um candidato dessa área que conseguisse mais votos do que ele, na esquerda. Então B ficaria em terceiro lugar e perderia definitivamente as eleições.
Ora C pode começar a surgir em segundo lugar nas sondagens. Nesse caso, já tudo ficaria perdido para B.
Falta agora referir outros concorrentes.
Há o candidato comunista.
Em regra, o seu partido lança-se nas presidenciais, para posteriormente apresentar a desistência. Recomenda ao seu eleitorado que vote numa outra pessoa.
Da única vez em que levou a candidatura até ao fim, o resultado foi decepcionante. Tal prejudica a imagem da organização.
No entanto, desta vez, as coisas são diferentes.
Há certos eleitores comunistas incapazes de dar o seu voto a outra pessoa que não seja do seu partido. Portanto, se houver uma desistência, não irão votar.
Ora, nestas eleições, existe a séria probabilidade de A ganhar logo à primeira volta.
Como já vimos, havendo muitos candidatos, diminui a abstenção.
Assim, o mesmo número de votos em A representa menos, proporcionalmente. Com dois concorrentes, seriam sempre mais de metade. Havendo vários, poderão não chegar a atingir os 50%.
Na lógica do antigo chefe de estado, é fundamental atingir dois objectivos. Chegar ao segundo lugar. Fazer com que A não ganhe logo à primeira volta.
Ora o primeiro fim é alcançável.
O segundo obtém-se da seguinte forma: levar o maior número possível de eleitores às urnas, para que votem em qualquer concorrente, menos em A.
Aqui desempenha um importante papel o candidato comunista.
Se ele se mantiver até ao fim, vai potenciar uma dispersão de votos à esquerda.
Alguns dos que iriam votar nos outros concorrentes dessa área, irão agora manifestar a sua preferência por este candidato. Regista-se uma transferência de votos.
Todavia, sucederá algo a que já aludi.
Ele também atrai certos eleitores que não sairiam de casa. No entanto, havendo E, um comunista, irão votar nele.
O registo dos votos será diverso. E- 9%, D – 9%, C – 13%, B – 28%, A – 41%.
Vai-se acentuando a diminuição de percentagem de votos em A.
Este fenómeno tem uma explicação.
Como há muitas candidaturas à esquerda, os eleitores deste segmento sentem-se mais e mais motivados a ir votar num dos muitos concorrentes situados na zona da sua preferência.
Uma série de potenciais abstencionistas transformam-se em votantes activos.
Portanto, os mesmos apoiantes de A têm de debater-se com um crescente número de eleitores da esquerda.
Deste modo, aos comunistas apresenta-se um dilema.
Pretendem derrotar aquele a quem chamam o “candidato da direita”. Para isso, pretendem eleger B, antigo chefe de estado.
Sabem que, para atingir esse objectivo, o melhor é o candidato comunista não desistir das eleições.
Mas, por outro lado, também têm conhecimento de que ele iria conseguir um resultado pouco expressivo. Com o inerente prejuízo para a imagem do partido, como já mencionei.
Não será fácil decidir.
Uma palavra quanto a possíveis candidatos realmente de direita.
Um ex-ministro, o líder de um novo partido ou um antigo dirigente que já se candidatou anteriormente.
Nenhum deles conseguirá mais votos do que B. Portanto, não prejudicam o objectivo dele de ficar em segundo lugar.
Contudo, para B, eles apresentam duas vantagens.
Permitem a tal dispersão de votos, que faz diminuir a abstenção e provoca o decréscimo dos pontos percentuais obtidos por A.
Depois, alguns eleitores deixarão de votar em A para dar o seu voto a um destes candidatos.