quinta-feira
BODE EXPIATÓRIO
Anteriormente, mencionei os casos em que uma pessoa vem a falecer e os seus herdeiros são responsabilizados pelo pagamento das dívidas.
Essas situações realmente ocorrem, mas somente no que toca a satisfazer a liquidação desse débito. Mesmo assim, nunca poderá ser obrigado a pagar mais do que recebeu em herança.
Contudo, no domínio criminal, quando o infractor morre, pura e simplesmente, o processo termina e fica arquivado.
Um indivíduo é acusado de ter violado uma daquelas regras fundamentais da vida em sociedade. Sendo aplicável uma pena de multa ou de prisão, apenas ele próprio é o responsável. Caso venha a falecer, os familiares não sofrem a sanção.
Só o criminoso pode ser encarcerado e cumprir a pena de prisão. Nenhuma outra pessoa pode ir para a cadeia, em nome do infractor.
Nem sempre as coisas foram assim. Outrora, em Portugal, encontrava-se consagrada a transmissibilidade das penas. Na eventualidade de o criminoso morrer ou fugir, a pena era aplicada a um dos seus familiares.
Mesmo actualmente, noutras latitudes, ainda se verifica tal possibilidade.
É curiosa a origem, em língua inglesa, da expressão equivalente a bode expiatório. Trata-se da pessoa que paga pelo crime cometido por outro indivíduo.
Normalmente por força de mera escolha arbitrária, um inocente é castigado por algo de mal que ocorreu. O verdadeiro culpado fica impune.
Dito de outro modo, paga as favas.
Literalmente, o bode expiatório é mencionado na Bíblia. Tratava-se de um animal que era apartado do seu rebanho. Abandonado aos elementos da natureza, no Dia da Expiação, era o objecto central de um ritual hebraico.
Em sentido figurado, associa-se ao sacrifício de Jesus, que expulso da Cidade, chama a si os pecados da humanidade.
Regressemos, então, à língua inglesa.
Também se utiliza o vocábulo scapegoat.
É comum a palavra Patsy, igualmente.
Na linguagem judicial ou cinéfila, vulgarizou-se a expressão frameup. Trata-se de emoldurar alguém, ou seja, enquadrá-lo na fotografia do culpado de um crime.
O verdadeiro criminoso altera as provas, para incriminar outra pessoa.
Um exemplo é aquele a que aludi recentemente. Um assaltante de Coruche foi apanhado em flagrante. Em vez de fornecer a sua identidade, deu o nome do seu irmão gémeo.
Apesar de serem habituais aquelas expressões, a mais conhecida é whipping boy: o rapaz chicoteado.
Outrora, os pequenos príncipes pertencentes à família real inglesa escapavam a qualquer tipo de castigo, mesmo quando o seu comportamento era censurável.
A irrequietude, a desobediência aos mais velhos ou alguma falta de educação nunca poderia implicar a punição dos filhos dos monarcas.
Nem os próprios progenitores se permitiam castigar os príncipes, que eram tidos como intocáveis.
Mas a falta não ficava impune.
Entre os amigos mais chegados de cada príncipe, havia sempre o whipping boy. Era o desgraçado que apanhava, sempre que o filho do rei se portava mal. Baixava as calças e era brutalmente chicoteado por algo que não tinha feito. Pagava pelo seu companheiro.
Esta bizarra prática manteve-se até ao século XVI.
Apresentava dois aspectos.
De certo modo, o castigo era eficaz, relativamente ao príncipe mal comportado. Exercia um certo efeito psicológico. Como ele assistia à cruel punição, custava-lhe ver o seu amigo sofrer por culpa dele.
Por mais estranho que possa parecer, era uma honra ser escolhido para desempenhar o papel de whipping boy.
Tal cabia somente a filhos de nobres.