quarta-feira
UMA TORMENTA
Anteriormente, aludi aos conflitos de vizinhança, que muitas vezes acabam em processos judiciais.
Já não me refiro aos problemas nas zonas rurais, onde uma questão de águas ou de vedações pode terminar em sacholada e na perda de uma vida.
Tenho em mente aquelas pequenas questiúnculas em áreas urbanas, ocorridas em prédios, onde a proximidade das habitações faz com que os ruídos sejam mais facilmente transmitidos e actividades normais a horas menos próprias se tornem incomodativas. Por outro lado, essa mesma contiguidade faz com que as retaliações sejam mais facilmente levadas a cabo.
Nesta matéria, a imaginação é muitíssimo fértil e, por vezes, leva a que a realidade ultrapasse aquilo que seria passível de ficcionar.
Infelizmente, começa a tornar-se frequente uma técnica altamente condenável.
Como é sabido, as Comissões de Protecção de Crianças existem na quase totalidade dos municípios portugueses.
A sua actuação é muito importante e encontra-se sob largo escrutínio da opinião pública.
Qualquer denúncia de maus tratos sobre um menor provoca uma aturada investigação sobre o modo de vida da criança. A participação pode ser anónima e realizar-se através de um mero telefonema ou uma carta não assinada.
Nestes organismos, sabe-se que algumas das queixas são completamente infundadas. No entanto, todas implicam forçosamente que seja efectuado um inquérito.
Se duas vizinhas não gostam uma da outra e uma delas é mãe, um telefonema deste tipo pode tornar-se numa fonte de sérios incómodos.
É feita uma queixa anónima, repleta de falsidades.
A comunicação normalmente refere que se ouvem gritos lancinantes de dor do menor, logo de manhã, conseguindo-se até escutar os ruídos provocados pelas pancadas e os berros da mãe, que trata o filho pior do que os animais.
Depois, afirma-se que é habitual a criança andar a pedir alimentos, revelando que, em casa, pouco lhe é oferecido.
Depois, introduz-se o relato mais detalhado de um episódio concreto e capaz de impressionar, para dar credibilidade à história e tornar o caso facilmente memorizável. Como por exemplo: “numa ocasião, o menino deixou cair um carrinho que tinha na mão e que se veio a partir-se em dois. A mãe disse logo: quando chegares a casa, vais colar o carrinho e enquanto ele não estiver arranjado, vais apanhando com o cinto sem parar, até a cola secar”.
Ora a primeira coisa que se faz, na Comissão, é convocar a mãe da criança.
Relata-se que, efectivamente, há denúncias anónimas sem ponta de verdade, mas é sempre obrigatório realizar uma investigação.
A progenitora é ouvida e obrigada a negar as acusações, explicando como é a sua vida.
Depois, técnicos do organismo deslocam-se à escola frequentada pela criança e interrogam professores e auxiliares.
No prédio onde o menor reside, são ouvidos os vizinhos.
É uma das formas mais perversas de prejudicar uma pessoa com quem não se simpatiza.
Depois, há uma série de outras técnicas mais ou menos comuns.
O vestuário estendido nas cordas de secar a roupa constitui um dos objectos mais atingidos no meio destas guerras. Umas gotas de lixívia lançadas de um andar mais elevado dão cabo de peças novinhas, sendo difícil produzir prova quanto à pessoa que produziu o dano.
Um lenço de pano, bem sujo, tendo servido já para assoar umas quantas vezes, inserido numa caixa de correio, é das coisas mais desagradáveis.
Cobertores, lençóis ou cortinados estendidos sem se encontrarem dobrados, retiram luminosidade ao andar inferior. Frequentemente, o lesado dá um puxão e faz com que as peças caiam para o solo. Até já houve quem se lembrasse de colocar uns espigões na caixa do estore, para romper os tecidos estendidos no andar de cima.
Um clássico consiste em trocar os fios eléctricos na botoneira das campainhas, no exterior do prédio. Quando se pressiona o botão do primeiro direito, toca a campainha da vizinha do terceiro esquerdo.